Analfabetismo poetico

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Esse assunto é muito mais abrangente e, normalmente, afeta a arte como um todo. Porém, o exemplo que vou usar nesse texto é interessante porque ele escancara de uma maneira bem óbvia o assunto. Recentemente, têm circulado umas animações de como seriam os anjos de acordo com a descrição bíblica literal. São figuras que possuem mil olhos e mistos de animais, etc. Ou seja, eles não fazem o mais mínimo sentido, ao menos nos olhos de uma pessoa comum. Veja abaixo um exemplo do que está circulando por aí. Não sei quem fez, mas se descobrir coloco os créditos.

A pergunta a ser feita é: isso aí faz sentido? Vamos pensar um pouco. Anjos são, de acordo com a doutrina católica – e acho que isso é mais geral, deve abranger mais religiões; entes puramente imateriais. Anjos não têm corpos como os seres humanos, e essa é a principal diferença entre eles e nós. Quer dizer que anjos não vivem no mesmo plano de realidade que os homens. Em outras palavras, como são espíritos puros, eles não possuem uma forma definida no plano material.

Portanto, essas descrições de anjos que tem na Bíblia, por exemplo, não se referem àacorpos de anjos, porque eles não os têm. Referem-se a coisas que eles representam, como a justiça ou o conhecimento. Por exemplo, um olho alado pode se referir, entre outras coisas, à capacidade de enxergar a realidade desde um plano mais elevado – ou divino, o que seria óbvio para um anjo. Já espadas na boca pode ser interpretado como um discurso justo.

Existe uma quantidade enorme dessas descrições, especialmente no Apocalipse, e alguns são híbridos de dois ou mais animais. A interpretação do que eles significam é mais ou menos óbvia, basta fazer uma lista de qualidades que cada um dos animais representam e juntar tudo. Isso não forma a imagem simbólica total, mas é um bom ponto de partida.

Que raios quer dizer ‘descrição literal’?

Onde entra o literal nisso aí? Afinal, de acordo os pais da Igreja e os grandes santos, a interpretação literal da Bíblia sempre é verdadeira e precede todas as outras. O problema todo gira em torno do que significa literal. Literal refere-se a um conjunto de palavras que designa algo concreto e que existe na realidade. Uma coisa, tomada como literal é óbvia no plano material. Uma cadeira azul é uma cadeira que é azul e que existe de verdade. Um touro é um touro que está em algum lugar, e assim por diante. ‘Um cara roubou minha carteira’ quer dizer que uma pessoa não determinada tomou posse de um bem que me pertencia sem a minha autorização. Até aí, nada demais.

A coisa complica quando sai do plano material. O que seria uma imagem literal do amor, por exemplo? Afinal, o amor existe. A pegadinha é que ele é uma ideia abstrata, e não existe um objeto que o represente. A gente encontra muitos exemplos de amor no mundo, tanto que romances e poemas em quantidade absurda já foram escritas relatando o tema. Mas o que seria uma representação literal do amor? A pergunta correta é se seria até possível criar uma.

Então, quando alguém te pergunta o que é o amor, o melhor que você pode fazer é dar exemplos. Não tem nem como dar uma definição séria do termo. Por outro lado, para o analfabeto poetico que me pergunta o que é o amor, e eu respondo com um romance, ele imagina que o amor seja um livro, porque o livro é como um símbolo material da ideia abstrata. Por outro lado, uma obra que relata uma história de amor não é uma descrição literal do amor? Mas ela é só uma descrição, não é a coisa. O analfabetismo poetico, que é uma forma que precede o funcional, faz esse tipo de confusão.

Esse, inclusive, é o que faz as pessoas confundirem amor com sexo, porque elas só são capazes de tomar o símbolo material. O analfabetismo poetico torna impossível o amor ser tratado como algo sublime. É por isso que as letras de sertanejo só tratam de chifres, brigas, desentendimentos e libido.

Realidade Divina

Voltemos às imagens dos anjos. Se eles vivem numa realidade imaterial, e se a descrição literal não é algo tão simples quanto descrever a cor de uma cadeira, então representar algo de um plano de realidade que está acima do nosso usando meios de expressão do nosso deve ser simplesmente impossível. Vou usar um exemplo da arte para ilustrar o ponto. Abaixo está uma pintura de Caravaggio sobre o momento em que São Matheus é chamado a se tornar um Apostólo.

Olhando a cena, e isso é o que eu acho interessante no Caravaggio, ela não tem nada demais, nada de Divino (tanto que o próprio Cristo não aparece nela). Parece uma cena trivial. E é exatamente o que as pessoas que estavam presentes na hora provavelmente viram, ou você acha que o Cristo se manifestava por aí com uma faixa sobre a sua cabeça dizendo exatamente o que ele era e que as pessoas acreditavam na hora? Tanto que, para que as pessoas fossem convencidas de que ele era o Messias, teve que andar fazendo milagre atrás de milagre, e ainda assim foi morto pelos que não creram (mas principalmente pelos que creram e o rejeitaram, só que isso é outro assunto).

O ponto é que, quando confundimos a descrição literal com a descrição material, temos uma imagem incompleta, até inútil e mesmo completamente errada, da realidade. No quadro acima fica óbvio que a tal representação literal é incompleta. Agora, fica a pergunta, como seria o mesmo quadro se, dessa vez, fosse levada em conta a realidade dos anjos? Teria como representar? Sem parecer uma tela cubista, provavelmente não.

Símbolos

É aí que entram os símbolos. Como você representa um cubo em duas dimenões? O melhor que pode fazer é um desenho, mas imediatamente vai notar que as qualidades que fazem um cubo ser um cubo foram suprimidas, e você só tem a noção de que o desenho refere-se a um cubo por que conhece a noção de um cubo no mundo real. Por exemplo, se você girar o papel, vai ver que o desenho do cubo continua igual, enquanto um cubo de verdade pareceria diferente visto de outro ângulo. Ou seja, um cubo na tela do seu computador é apenas a referência a cubos que existem no mundo real, e você sabe disso.

O desenho bidimensional do cubo é um símbolo do que sejam os cubos. Um símbolo nada mais é do que uma forma simplificada de uma realidade mais abstrata. Essas descrições de anjos bizarros da Bíblia são exatamente isso. Eles viram monstros porque a projeção do que eles são na nossa realidade é impossível de ser feita. Então, a imagem resultante, do ponto de vista material, realmente é grotesca. É o mesmo que mostrar o símbolo bidimensional do cubo para um ser que vive em duas dimensões, e que não sabe e o que seria um cubo na realidade. É óbvio que pareceria a coisa mais bizarra do mundo.

Pense da seguinte maneira. Eu posso representar um cubo num plano dimensional de infinitas maneiras, e poderia dar uma multidão delas a um ser bidimensional. O quão bizarro esse objeto pareceria para ele?

Beleza

Gostaria de comentar mais esse outro fator, importantíssimo, e que é uma pista fundamental para entender a questão. Se a beleza é a manifestação da perfeição, e anjos são perfeitos, então eles não podem ser feios. Se essas imagens são feias, então elas não representam os anjos. Portanto, não é uma boa ideia achar que anjos sejam materialmente assim, porque eles simplesmente não são. Acreditar que eles sejam materialmente desse jeito é um erro crasso a respeito da realidade em si mesma, mas é perfeitamente compreensível do ponto de vista da mentalidade materialista contemporânea. O que é preciso entender é que eles são de fato que está descrito ali na Bíblia, a questão é que aquela não é uma representação material, mas simbólica.

As descrições que estão na Bíblia, nesse caso, precisam ser interpretadas simbolicamente, porque elas são símbolos literais. Referem-se a realidades que não nos são acessíveis, a não ser por uma fresta na realidade. A interpretação literal, nesse caso, é que um olho enxerga alguma coisa. Mil olhos em torno de toda a circunferência da cabeça enxergam mil direções diferentes em todas as direções e com mil vezes mais resolução, o que seria um bom retrato na onisciência. E isso é literal, não? Só não quer dizer que sejam olhos que existam no nosso mundo.

E é assim que essas coisas devem ser interpretadas, inclusive, levando-se em conta que as traduções não são perfeitas e que existem muitas coisas que até hoje estão em discussão. A boa e velha cautela sempre se aplica, bem como a formação literária com os clássicos da literatura, da poesia e da arte, porque são eles que dão as ferramentas corretas para interpretar essas coisas.

Fábio Ardito

Pelo mundo atrás de treta.

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