Hoje estou inaugurando uma nova coluna aqui no blog, que pretendo fazer todos os sábados, e que são artigos sobre temas mais ligados à filosofia da arte do que à fotografia em si. Vou deixar o trabalho comercial para a semana e colocar algumas coisas um pouco diferente nos finais de semana. Como primeiro assunto, queria compilar uma série de estudos que andei fazendo durante essa semana, sobre a questão do papel do artista como articulador entre o caos e a ordem, e como essa classe de pessoas é parte intrínseca de toda civilização.
O criativo e o bizarro
A criatividade é a habilidade de encontrar conexões entre coisas que aparentemente não possuem relação alguma, de modo a conceber certas articulações que criam algo novo. Assim, ela é uma função eminentemente positiva, quer dizer, de pelo menos duas coisas cria-se uma terceira que tem uma função que é mais vantajosa do que as funções das suas partes separadas.
Por exemplo, posso adicionar água à terra do chão de um determinado lugar, que possui certas propriedades, fazer uma massa, modelar numa determinada forma e, por fim, colocar num forno. Depois de um tempo, tenho tijolos e telhas, com os quais construo uma casa. Em todo esse processo, a cada etapa o resultado possui mais valor do que os materiais desagregados da etapa anterior.
As casas têm mais valor – ou utilidade, que uma pilha de tijolos, Os tijolos, por sua vez, são mais valiosos que o barro, que é mais valioso que a terra que estava no chão. Nesse exemplo também fica bem evidente como a terra do chão e a água, aparentemente desconexas, podem ser articuladas de forma a resultar numa outra coisa, que são os tijolos e, no fim, numa casa.
Por outro lado, o processo destrutivo, por si próprio, não pode ser considerado criativo, exatamente porque não cria nada, ou seja, ele diminui o valor de algo que já existia através da desarticulação das partem que constituíam a coisa destruída. Se eu demolir uma casa, a pilha de escombros valerá menos do que a casa que estava lá antes. É claro que existem processos destrutivos, e eles são a maioria, que são necessários para que se possa criar uma outra coisa melhor do que essa que foi destruída. Para fazer omelete, é preciso quebrar os ovos, como se diz.
Note que quando um processo destrutivo é incorporado em outro criativo maior não há problema algum, muito pelo contrário. O problema todo começa quando o destrutivo toma a si próprio como objetivo final. Infelizmente, há hoje a tendência de confundir a criatividade com a bizarrice, e a arte é uma das primeiras vítimas desse processo. Basta ver que a grande maioria dos temas atuais trata de aglutinar coisas que realmente não possuem nenhuma ligação concreta construtiva para, logo em seguida, dizer que aquela desconexão é justamente uma relação legítima. Já notou que, num museu de arte moderna, as pessoas precisam ser convencidas do sentido das obras de arte? Ninguém precisa ser convencido diante da Pietà.
O caos
A natureza como a conhecemos é uma grande mistura de ordem e caos, e está aí a física quântica para demonstrar exatamente isso, como pretendo falar melhor numa outra oportunidade. Entretanto, seja na escala microscópica, seja na escala dos seres humanos, há sempre um conjunto de regras e as variações inevitáveis dentro de um quadro possível. Por exemplo, existem gatos de muitas cores, mas não existem gatos de seis patas, e os que eventualmente nasceram assim são considerados anormalidades. Há uma determinada forma nas coisas que a gente naturalmente espera, e que, na verdade, a maioria das pessoas tende a lidar somente com essas.
Para além dessas coisas, existem outras que podemos dizer que possuem um ordenamento menor. Vamos pensar num outro exemplo. Seja a areia da praia, no seu estado natural, espalhada onde o mar quebra, formando pequenos vales e picos, como nessa foto abaixo. O que acontece se alguém for lá, pegar essa areia e construir um castelo? Podemos dizer que tudo o que foi alterado foi a posição dos grãos de areia, uns em relação aos outros e o conjunto em relação ao restante do ambiente. Ou seja, aquele pedaço de praia, no estado natural, tem menos ordem do que depois que fizeram o castelo de areia, porque agora alguns grãos possuem um ordenamento que faz algum sentido dentro de um quadro lógico. Esse é o processo criativo.
Pode-se dizer que a areia, no seu estado fundamental, é mais caótica do que quando agrupada no formato de um castelo. É precisamente aí que entra o artista. É ele quem reconhece que os grãos de areia podem ser tirados do meio do caos e colocados numa determinada ordem que faça mais sentido do que antes. Do mesmo modo, se eu jogar petróleo numa praia ela passará a um estado mais caótico do que o inicial. Essa é a verdadeira preocupação ambiental que se deve ter, mas já é outro assunto.
Do caos para a civilização
Acontece que o instinto criador no ser humano é mais intenso que o destruidor, e é por isso que as civilizações surgem. Algumas pessoas se agrupam porque conseguem resolver alguns problemas. Por exemplo, para não ficar vulnerável a ataques de animais, alguém constrói uma casa de madeira. Os demais, ao ver que aquela solução funciona, copiam a arquitetura.
Veja que aqui ocorre exatamente o mesmo processo que expliquei com a areia da praia. Alguém vê as árvores e então cria toda uma cadeia de articulações que culminam numa casa, com o objetivo de proteger-se de animais. Qual a relação entre árvores e proteger-se de animais? Aparentemente, nenhuma. É precisamente isso que é a criatividade.
Vamos adiante com a nossa situação hipotética. Com o decorrer do tempo, alguns indivíduos desse grupo vão encontrando soluções cada vez mais complexas para problemas que são, também, cada vez mais complexos. Conforme as coisas vão sendo resolvidas, a situação vai melhorando e aquele agrupamento de pessoas acaba virando toda uma ordem social extremamente complexa. E tudo isso porque alguns indivíduos, com essa coisa chamada criatividade, foram resolvendo as coisas.
Só que tem um detalhe nisso, estou dando exemplos de coisas materiais, mas em nenhuma civilização são os problemas de ordem material que mais afetam o homem. Se fosse, seria possível conhecer alguma civilização que não tem religião, coisa que não se tem notícia – muito menos nas que se julgam ateias, já que o ateísmo também é uma religão (sorry, not sorry). O artista não é só o cara que é pioneiro numa determinada coisa. Ele é alguém que encontrou um valor maior que os outros em coisas que estavam fora do campo de visão das outras pessoas.
A ordem
A ordem é desejável para quase todas as pessoas, as exceções são aquelas com transtornos mentais, é claro. E a verdade é que a maioria das pessoas têm a tendência de querer preservar a ordem vigente. É precisamente por isso que se averigua, na maior parte dos lugares, que a maioria das populações tende ao conservadorismo. Essa é uma posição que é extremamente lógica do ponto de vista prático. Não é muito mais fácil eu conservar o que já tenho do que ficar buscando coisas novas o tempo todo?
O Jordan Peterson conta uma anedota muito interessante a esse respeito, que é sobre as zebras. As listras das zebras não são camuflagens, como se acredita, porque o preto e o branco contrastam formidavelmente com os tons de palha da savana. Mas quando as zebras estão juntas, umas são indistingüíveis das outras. Um dia, alguns cientistas que investigavam o assunto estavam observando uma zebra específica, mas como ela se confundia com as demais do bando, eles pintaram uma bola vermelha na anca de uma delas.
Como resultado, ela foi posta pra fora do grupo e imediatamente devorada pelos leões. Portanto, o truque das zebras consiste em andar em bando para parecer ser uma coisa só muito maior, aí nenhum leão vá se meter a besta. Só que, a partir do momento que um indivíduo se perde do grupo, vira jantar.
Nas sociedades humanas, diz o Jordan Peterson, vale mais ou menos a mesma lógica, e aqueles indivíduos que tentam se destacar do grupo tendem a ser marginalizados por ele, porque a força toda está no conjunto. Só que são esses indivíduos, que ficam fora da ordem vigente, que buscam no caos novos elementos que podem ser ordenados dentro do esquema de coisas do restante do grupo.
O artista é justamente essa zebra marcada de vermelho, e ele tem que buscar algo de valor no ambiente hostil para ser aceito pelas outras pessoas, coisa que quase nunca ocorre porque leva um tempo para que aquele valor novo seja aceito. A mensagem aqui é que todo artista precisa estar ciente que não deve esperar reconhecimento, muito pelo contrário. Se você for reconhecido logo de cara, provavelmente é porque não está fazendo nada de novo e positivo. Esse é a mensagem de hoje.