Preciso começar essa crônica com uma distinção muito importante. Nada do que tratarei aqui é sobre conservação do patrimônio da cidade. Esse não é um problema do poder público mas, ao contrário, da população como um todo. É um problema gerado por uma elite incapaz e pela inércia popular.
A situação da arquitetura do centro de Campinas só pode ser resumida em uma única palavra: caos. Nenhuma outra conseguiria expressar minimamente o que se passa na incrível mistura de estilos do centro da cidade.
A marca mais fundamental da arquitetura do centro de Campinas é a mistura de estilos antigos, modernos e pós-modernos, cada um erguido no meio dos outros, sem a mais mínima preocupação estética com o restante da paisagem urbana. No fundo, é um acumulado de ‘genialidades’ que foram se empilhando com os anos.
Algumas são simplesmente aterradoras, como o edifício cilíndrico do Objetivo no início da Av. Francisco Glicério. É até difícil de imaginar como pode ter passado pela cabeça de alguém que aquilo seria uma boa ideia. Provavelmente é obra de algum arquiteto renomado, o que só aumenta o escândalo da coisa e evidencia onde foi parar a inteligência do povo campineiro. Talvez somente o Teatro de Arena chegue perto de tamanha aberração, mas isso é assunto para o Cambuí.
O progressismo extremo de Campinas
Talvez, essa seja mesmo a marca de Campinas. A Princesa d’Oeste de outrora sempre foi conhecida como a cidade do progresso, sendo, inclusive, considerada a meca do republicanismo. Aqui sempre foi a terra das vanguardas e, pelo visto, elas eram tantas que cada uma tentou vencer a outra pela força.
O resultado, obviamente, é que quando se é muito eclético não se tem estilo nenhum. A competição infame entre vanguardas e escolas de pensamento progressistas, sem nenhuma dúvida, deixou suas marcas nefastas. Não há como negar que o centro de Campinas não possui identidade arquitetônica.
O mais incrível dessa situação é que, olhando fotos antigas da cidade, ela era belíssima e harmoniosa. Campinas já foi terra de arquitetos renomados, como Hoche Segurado, que projetou a magnífica Basílica de Nossa Senhora do Carmo – apesar de a ter impregnado com simbolismo maçom, uma evidente subversão da fé católica e que parece ter passado completamente despercebido. Até hoje há um vitral com um ‘olho que tudo vê’ na lateral do prédio.
Entretanto, havia ao menos harmonia na antiga arquitetura de Campinas. Nenhum dos prédios era destoante dos demais e todos eram belos. Os exemplos estão aí aos montes até hoje. Pode-se citar a Catedral Metropolitana, o Jóquei Clube, o prédio da PUC, a Basílica de Nossa Senhora do Carmo, o Palácio da Mogiana, a Loja Maçônica da Av. Campos Salles, o Edifício dos Correios, entre muitos outros que se pode ir desenterrando no meio dos escombros estilísticos do centro.
Também existem centenas de pequenas casas e palacetes, e algumas delas ainda resistem bravamente. Outras já não têm tanta sorte, como as que se encontram atrás do Mercadão Municipal que, certamente, virarão estacionamento. Existem destinos piores, como os palacetes da Av. Júlio de Mesquita, que têm as suas portas e janelas substituídas por vidraças para servirem de agência bancária. Talvez fosse mais digno demolir de uma vez por todas. Porém, mais uma vez, isso é assunto do Cambuí e vai ficar pra outra hora.
Já na Av. Francisco Glicério, que é justamente a principal artéria do centro, empilham-se os edifícios da era modernista no estilo caixa-de-sapato dos anos 60 e 70. São justamente esses os que causam a maior sensação de angústia no centro.
A arquitetura modernista, liderada por arquitetos comunistas como Niemeyer, baseia-se toda no materialismo Marxista (evidentemente). Isso significa que todo o conteúdo metafísico da estética precisa ser removido, e ele é substituído pela coisa mais sobrenatural que pode existir num mundo completamente naturalista, que é a geometria.
É por esse motivo que a grande maioria dos prédios do centro acabaram morrendo tão cedo. Por mais que uma obra como o Jóquei Clube apresente desgaste com o tempo, ele não perde a sua beleza porque ela é imaterial. A beleza de um prédio desses reside no seu conjunto, em que cada detalhe é tão parte do todo quanto o próprio todo. Ou seja, a única maneira de realmente acabar com a beleza de um prédio desses é derrubando.
É isso que explica porque peças antigas ficam tão bem com pátina. Porque eles possuem uma mensagem atemporal e o desgaste só evidencia ainda mais esse vínculo com a eternidade.
Já a arquitetura modernista, por se basear somente no aspecto material, começa a acabar no mesmo dia em que a pintura se desgasta e os vidros se sujam. Como falta alma à essas obras, elas são temporais, e por isso precisam de renovação constante, além de ficarem naturalmente defasadas com o tempo. Todo prédio modernista, depois de cinco ou seis anos, já fica parecendo velho.
E, se isso já não bastasse, o modernismo é uma escola que, ao invés de buscar unidade, é uma corrida maluca pra ver quem inventa mais moda. Com isso, todos os prédios do centro cresceram desordenadamente. Não há a mais mínima harmonia entre alturas, estilos de fachadas, estilos de janela, etc. Cada um empilhou o que achou que iria suplantar o anterior e deu no que deu: um favelão.
A origem do caos
Pra mim, tudo isso começou num evento muito específico: a demolição da Igreja do Rosário em 1956. Havia uma moda na época que era a abertura de grandes avenidas nas cidades, movimento liderado por mais um cabeça-de-bagre diplomado brasileiro, Prestes Maia.
Como Campinas é uma cidade de vanguarda, é óbvio que ela precisava aderir à modinha dos débil mentais da época. Então a solução era demolir meio centro pra passar uma avenida larga e, assim, continuar na moda. O alvo escolhido foi o que é hoje a Avenida Francisco Glicério.
Entretanto, ali no meio havia um sério uma problema: uma das mais antigas e tradicionais igrejas da cidade, a Igreja do Rosário. A solução era óbvia, demolir a bendita. Houve grande discussão na época, pois alegava-se que o prédio estaria condenado e que não havia como reformá-lo. Uma comissão de engenheiros paga por fiéis demonstrou que havia salvação, mas o próprio bispo interviu e garantiu a demolição. Não é sempre que temos bispos bons e valentes, como Dom Nery, liderando a Igreja.
Dali por diante, escancarou-se as portas para a arquitetura modernista, que desfigurou completa e irremediavelmente o centro da cidade.
Por que a arquitetura do centro de Campinas importa?
A arquitetura, por se tratar de uma arte cara, é sempre responsabilidade das elites do lugar. São as pessoas com maior condição financeira que constroem os edifícios mais importantes. Por isso mesmo, quando se faz uma obra dessas, o sujeito faz questão de deixar a sua marca. Para isso, ele contrata escritórios de arquitetura que, por sua vez, são formados nas universidade e, por isso, fazem parte da elite intelectual daquela sociedade.
Então, a arquitetura acaba sendo a expressão dos valores daquela elite intelectual que habita as universidades e não da sociedade que habita o local. A questão é que essa elite, no Brasil, entrou num processo de declínio cognitivo acentuado desde os anos 60 e foi se afastando cada vez mais da cultura popular. Quem freqüentou a universidade pública (e eu tive o desprazer por 15 anos) sabe que a cultura acadêmica brasileira é completamente incompatível com a cultura popular.
Soma-se a isso o câncer intelectual nacional, que é a tara por estar na moda. Então, quase todos os intelectuais das universidades estão sempre atrás das últimas modas e tendências da Europa e Estados Unidos. Foi precisamente por isso que nasceu na Semana de Arte Moderna de 22. Inclusive, romper com a cultura europeia era a moda na Europa daquela época.
Assim, as ideias de jerico de meia dúzia de revolucionários sem nenhum talento, com um monte de estrume na cabeça e apoio financeiro de uma elite monstruosamente inculta e caipira acabou moldando fisicamente a cidade. Infelizmente, essa tendência não ocorreu só aqui. São Paulo foi totalmente mutilada e destruída pela arquitetura positivista do regime militar, outra praga revolucionária.
A arquitetura das cidades é construção da nossa classe intelectual, bem como todas as outras tendências de comportamento. O caos em que elas se encontram hoje é conseqüência direta do déficit cognitivo e cultural das nossas elites.
Acontece que a arquitetura é só o mais aparente efeito dessas tendências intelectuais. Todas as outras se manifestam nas pessoas que habitam esses prédios e, vendo o caos estilístico e a feiura de todos esses edifícios, te espanta que o centro de Campinas tenha virado, literalmente, uma cracolância? Ou é a arquitetura do centro de Campinas, ela própria, uma cracolândia?
A mim, só resta um sentimento: o desejo de correr desse lugar antes que ele desmorone. Até porque, a essa altura, o único jeito é demolir e começar de novo.
Fecho esse artigo com algo que Campinas poderia ter sido. Essas são algumas casas sobreviventes na Avenida Anchieta: