Toda forma de arte, em última análise, é uma materialização de conceitos transcendentais. As formas representam símbolos que a psique do artista capta, conscientemente ou não. A arquitetura, como forma de arte, não escapa desse processo, ao contrário. Seu efeito ainda é espalhado na medida em que as grandes obras influenciam as menores, tornando as simples casas inspirações em menor escala dos grandes edifícios. Como ela é, talvez, a mais cara de todas as formas de arte – um arranha-céu custa, facilmente, alguns bilhões de dólares; necessariamente é algo que se impõe a partir das classes mais altas.
Deste modo, a arquitetura de toda uma sociedade acaba demarcada pelos ideais da sua elite intelectual, já que os projetos são idealizados por pessoas que tiveram formação acadêmica no sistema universitário vigente, além de, devido ao porte de tais projetos, essas pessoas serem a elite dessa elite. Entretanto, esses arquitetos são, no fim das contas, contratados pelos empreendedores que possuem o capital necessário para a construção, e são eles que, no fundo, que ditam as regras. Há uma boa dose de influência da elite intelectual, mas há também a da financeira. Nesse jogo é onde refinam-se os símbolos que serão usados na arquitetura.
Esses conceitos são importantes porque eles permitem delimitar muito bem quais são os valores de uma sociedade apenas com a observação da sua arquitetura. Mais ainda, eles permitem moldar quais serão os valores explorados no futuro. Podemos aprofundar mais esses pontos analisando alguns exemplos.
Chicago e Nova York
Chicago éum excelente exemplo de como os valores profundos de uma elite determinam o rumo da arquitetura e, ao mesmo tempo, da sociedade. Não é possível entender a arquitetura de Chicago sem levar em conta que o nordeste americano atravessava um imenso boom industrial no começo do século XX. O clima era o de euforia devido aos grandes sucessos da indústria que, naquele momento, descobria que poderia levar o progresso material a todas as classes. Henri Ford, por exemplo, queria que o Ford T fosse um carro acessível aos seus trabalhadores, assim a indústria seria algo como um moto perpétuo, consumindo ela própria os seus produtos através dos seus operários.
A ideia era mesmo excelente, e deu muito certo. Essa receita gerou um sucesso tão estrondoso em tão pouco tempo, que logo ela se transformou numa crença pagã. A indústria era o novo deus, que poderia resolver todos os problemas através da produção em massa. O papel decisivo da indústria americana na Segunda Guerra Mundial certamente ajudou a fincar essa crença na sociedade americana e foi justamente nessa época que se propagaram as ideologias de controle totalitário da população, encabeçadas justamente por expoentes da indústria como o próprio Ford. Se eles dominavam o deus indústria, eles eram os deuses dos deuses e, por conseqüência lógica, eles é que saberiam o que todo o resto do mundo deveria fazer.
Assim, como o grande trunfo da indústria é construir coisas em escalas colossais, os edifícios de Chicago também deveriam ser colossais. E assim foi feito. Uma marca comum em quase toda arquitetura é que a altura dos prédios é uma demonstração de poder, e isso está presente em praticamente todas as culturas. Como a indústria americana era um poder jamais visto na face da terra, os prédios deveriam ser os mais altos e imponentes jamais construídos.
Porém, apesar de toda essa cultura industrial, que poderia ter levado ao brutalismo, a beleza era um componente importante dos produtos americanos. Na época, surgiu também o Art Deco, que era a crença de que todo objeto, por mais banal, poderia ser transformado em arte através de ornamentos. Assim, tudo era decorado e estilizado, de torradeiras a locomotivas e prédios. A beleza era ali, junto com a indústria, um deus do panteão pagão americano. E esses dois deuses eram os que apareciam em todos os prédios. Não bastava ser grande, tinha que ser ornamentado.
E isso gerou uma arquitetura que é simplesmente magnífica e majestosa. Chicago e Nova York são duas cidades únicas, apesar de sua época aparentemente já ter passado. A era da empolgação com a indústria se foi, e a deusa beleza também já não existe mais. O caminho da prosperidade industrial é materialista e, no final, o materialismo mata a beleza em nome da utilidade. Vendo tudo o que estava em voga na época, não era difícil prever o que viria a acontecer. Tanto que Gothan City é a visão da decadência dessas cidades, já vislumbrada há mais de 50 anos.
Esse caminho, e especialmente a mentalidade totalitária da elite americana, torna-se totalmente evidente nos edifícios que se ergueram nessas cidades, especialmente Nova York, a partir da década de 1960. Os prédios que antes possuíam uma beleza clássica começaram a ser substutídos por caixas de vidro e concreto, justamente desembocando no utilitarismo materialista, facilmente previsível, como já dito.
Brutalismo
O brutalismo é uma estética (ou ausência dela) baseada nos materiais brutos da construção, ou seja, o acabamento é abolido e a própria estrutura torna-se ornamento. O termo vem, principalmente, do concreto bruto, e seus principais proponentes foram Le Corbusier e Niemeyer. No fundo, essa arquitetura visa a redução de custos e a funcionalização da habitação na União Soviética. A sua inspiração é toda marxista e é uma forma extrema de materialismo. Por conseqüência, a beleza é totalmente suprimida, já que o belo é um conceito imaterial e, segundo essa ótica, uma mera ilusão. O que importa mesmo é que as construções sirvam de abrigo para as classes trabalhadoras, ou usinas, ou indústrias ou algo que tenha uma função.
Todo o bloco soviético utilizava esse conceito e, dado o nível de infiltração comunista no Brasil, aqui o brutalismo virou sinônimo de arquitetura. Ainda mais, toda a cultura brasileira, principalmente depois da semana de arte moderna de 22, tornou propício o ambiente para a instalação de uma mentalidade totalmente utilitarista.
No fim das contas, o brutalismo é simplesmente a desistência de compreender a transcendência. Pra que perder tempo com metafísica se podemos erguer esse viaduto em um terço do tempo por um quarto do orçamento? Azulejos são caros, demandam mão de obra especializada, levam tempo e, no final, servem só como adornos, que são mera frescura, pois a beleza não existe. Essa é a linha de raciocínio.
Roger Scruton, no documentário ‘A beleza importa,’ fez a importante observação de que os prédios utilitaristas são os primeiros a serem abandonados, justamente porque eles podem perder a função a qualquer momento. Esta era justamente a lógica que permeava todo o sistema soviético, onde as pessoas eram deslocadas de um lado a outro dependendo da utilidade, quando não simplesmente eliminadas como tranqueiras abandonadas num galpão. O mesmo fenômeno deu origem às imensas cidades fantasmas Chinesas, erguidas com o mero propósito de criar uma bolha financeira.
Toda a desgraça do bloco comunista já estava demarcada na sua arquitetura, e o mesmo se aplica ao que foi construído no Brasil. Brasília talvez seja o exemplo mais nítido, onde todas as formas de corrupção brotam no fértil terreno da ausência de transcendência, uma vez que cobrar proprinas é apenas um meio de fazer as coisas funcionarem. Se não há transcendência, não há moral, e aqueles prédios decadentes de concreto exposto são como o esqueleto da ruína moral de toda a sociedade que habita aquele local.
O mesmo vale para todos os lugares onde essa lógica se aplica. Toda ponte brasileira moderna é nada mais que um esqueleto, pronta para ser habitada por pessoas que, entregues aos seus vícios, tornaram-se nada menos que esqueletos mais ou menos vivos. Tudo isso vem da mesma fonte, o materialismo que joga no lixo os valores transcendentes. O resultado, como é de se esperar, é análogo para os prédios e para as pessoas.
Arquitetura Clássica
Por contraponto, podemos falar sobre a arquitetura clássica. Porém, para isso, é preciso antes levar em conta que não é possível entender essa arquitetura sem compreender primeiro a cosmovisão da antigüidade. Em primeiro lugar, não existia Kantismo (ou Cartesianismo) no mundo antigo. Portanto, não havia essa noção moderna de que o conhecimento possa ser dividido e classificado. Por exemplo, não fazia sentido a ideia de uma área chamada engenharia e outra arquitetura, onde uma cuida da estrutura e a outra do design.
No paradigma antigo, tudo faz parte de tudo. Por exemplo, no livro ‘I Quattro Libri della Architetura’, um clássico tardio do século XV, Andrea Palladio dá as regras de como devem ser distribuídas as colunas, os muros, os materiais, etc. Em nenhum momento a estética é tratada separada da estrutura. O canto de sereia do mundo moderno é que podemos fazer estruturas ainda mais majestosas que as da antigüidade se separarmos as duas áreas mas, como vimos, o caminho daí é só pra baixo.
Outras dimensões também fazem parte de qualquer edifício, inclusive a cósmica. Como não tinha caminhão na época, a logística era toda local e, portanto, todos os materiais empregados na construção vinham ou do próprio terreno ou de locais próximos. Por isso, tudo tinha uma receita que tinha que ser adaptada a cada edifício em particular. Porém, todo edifício era o ´pó´da terra que ganhava vida. Todo o terreno e a circunstância era parte da construção. O prédio era inserido até cosmicamente, já que certos materiais, como a madeira, só podiam ser colhidos e processados de acordo com as fases da lua.
Talvez ainda mais importante, a própria história da civilização entrava na receita. Por exemplo, a fundação e as partes que faziam contato com o solo deveriam ter estilo toscano. Conforme os andares iam subindo ia-se empilhando estilos gregos como jônico e dórico, de acordo com a própria linha histórica que formou Roma. Palladio diz que essa ordem leva em conta a dureza do estilo, os mais duros devem servir de fundação e por isso o toscano sempre é mais baixo.
Também não por coincidência, a Toscana é a terra dos Etruscos, o povo que deu origem a Roma. Portanto, se a base da civilização romana é etrusca, assim deve ser seus prédios. Se o maior refinamento romano foi grega, assim deve ser o pavimento mais alto. A continuidade temporal de tempos imemoráveis eram onipresentes nas ruas romanas, e todo cidadão sabia de onde vinha. O mesmo não acontece numa cidade moderna.
Perfeição
O que estes exemplos demonstram é que qualquer arquitetura é uma manifestação do ideal de perfeição. A perfeição romana era a própria cultura de Roma – cujo auge foi o estilo Gótico, puramente divino; a de Chicago uma sociedade industrial, porém bela; e a do brutalismo a mera sobreviência corporal. Estes três exemplos ilustram muito bem a seqüência de decadência que a sociedade ocidental vem enfrentando. Do puramente divino, ao divino terrestre para o mero material. O que vem depois do mero material? É só dar uma olhada na arquitetura das cidades brasileiras, ou na ausência dela.
O caso de Campinas
Outro dia, documentei o estado da arquitetura de Campinas neste artigo. É muito conveniente voltar neste assunto porque ao invés de discutir coisas das quais tenho pouco ou nenhum contato, posso discutir coisas que me afetam diariamente, e que venho observando e anotando há muitos anos. Historicamente, Campinas sempre foi uma cidade que aderiu com violência a todas as modas intelectuais vigentes. Ela foi, por exemplo, considerada a capital do republicanismo, da maçonaria e, mais tarde, um ponto de enontro importante para o movimento comunista, especialmente por causa da influência de intelectuais refugiados na UNICAMP a partir da década de 70. De certo modo, Campinas sempre foi uma cidade de revolucionários.
Por conta disso, basta dar um breve passeio pelo centro para notar a imensa competição de estilos, todos muito bem executados dentro das suas respectivas propostas. Por exemplo, como representante do neo-clássico, temos a Catedral Metropolitana, que contém magníficas esculturas do barroco, como a imagem de Nossa Senhora da Imaculada Conceição. Também o gótico tem seu representante com a Basílica de Nossa Senhora do Carmo, curiosamente projetada por um maçom.
Há espaço para o colonial, como o Palácio dos Azulejos, e também para o estilo clássico típico do século XIX e início do XX, como o Jóquei Clube, o Campus I da PUCC e diversos casarões que encontram-se na área. Falando em casarões, existem muitos deles na Avenida Júlio de Mesquita, da era do café. Também há representantes do Art Deco, como o prédio dos Correios, o Palácio de Justiça e o prédio da Telesp, em frente ao Mercado Central, este que é mais uma construção neo-clássica. Das obras modernas, como o estilo envidraçado dos prédios comerciais de Chicago e Nova York, existem vários exemplos na Avenida Norte-Sul, como o Dahruj Tower, o Trade Tower e o Vitoria Hotel.
Entretanto, como a fase de maior desenvolvimento da cidade se deu justamente nos últimos 40 anos, prevaleceu o estilo da moda cultural vigente na UNICAMP, o materialismo. Com isso, a maioria esmagadora dos edifícios construídos em Campinas nas últimas décadas possuem estilo brutalista, incluindo o que eu moro. Basta observar rapidamente os edifícios da Avenida Francisco Glicério. Essa avenida, inclusive, é um dos episódios que demonstram claramente o quanto a elite campineira tem fogo no rabo por novidades.
Inicialmente, essa avenida era apenas mais uma rua comum – e estreita, como era naquele tempo, no centro da cidade. Porém, Prestes Maia lançou a moda de demolir as cidades para criar grandes avenidas e, obviamente, Campinas não podia ficar de fora. Assim como em São Paulo, foi passado o trator sobre as edificações históricas para abrir espaço para a modernidade. Em Campinas, a vítima mais notável foi a Igreja do Rosário, que ficava próximo de onde hoje se encontra o Palácio de Justiça.
No local dessa nova avenida, foram erguidos prédios nos estilos modernistas da moda vigente, e a Avenida Francisco Glicério virou o que ela é hoje. Ali estão alguns dos edifícios que talvez sejam os mais feios já concebidos pela humanidade – e não, isso não é uma hipérbole. Como exemplo, podemos citar o prédio do Objetivo, mas basta andar de cima a baixo pela avenida. Outro exemplo, e esse talvez seja a jóia da coroa da feiura campineira, é a prefeitura. Poucos prédios no mundo conseguem ser tão feios quanto aquilo, que parece uma gaiola de arame toda torta. Bem representativo do que essa cidade é. Poderia continuar, citando a nova Rodoviária – em estilo OVNI acidentado, chamada ‘Terminal Rodoviário Ramos de Azevedo,’ obviamente um xiste com um dos maiores arquitetos campineiros, que fez obras maravilhosas como a Beneficência Portuguesa.
Essa tendência, obviamente, espalhou-se pelos prédios residenciais, onde a falta de arquitetura é notável. Os que foram construídos principalmente entre os anos 1970 e 1990 talvez sejam os piores. Todos são meramente funcionais, sem nenhum tipo de adorno, com janelas simples, entradas ainda mais simplórias e quase nenhum tipo de acabamento. São prédios que ficam (ainda mais) feios rapidamente, porque o acúmulo natural de pátina não tem como ser disfarçado pela beleza das partes. Além de serem construídos com o inuito de isolar os moradores. Meu prédio é um caso típico, onde já consegui passar meses sem ver a cara de ninguém. Depois todo mundo reclama de solidão nesse mundo moderno. Por que será?
Já dos anos 2000, especialmetne 2010 em diante, acontece uma espécie de renascimento do ideal de beleza. Alguns (apenas alguns) dos edfícios mais novos da região, que normalmente servem a classes mais altas, já começam a ter uma arquitetura mais requintada. Como exemplo, temos o Edifício Princesa de Mônaco, na Avenida Norte Sul, que é um dos mais belos da cidade. Esse, infelizmente, e também como indicativo do que acontece na cidade, está inabitado. Ainda assim, prevalesce o estilo caixa de concreto com vidro o que, apesar dos pesares, já é melhor do que o estilo soviético de antes.
Porém, dessa competição toda de estilos, a herança é que a arquitetura de boa parte da cidade não é somente disforme, mas é uma competição. Assim, o ambiente é hostil e desorientador. Ao contrário de cidades clássicas, onde as edificações possuem mais ou menos a mesma identidade e contam uma longa história, em Campinas, quando se anda na rua, o que vem a seguir é imprevisível. Por conta disso, a cidade funciona psicologicamente como uma selva, onde deve-se ficar alerta para não ser vítima de um predador. Digo isso como uma experiência psicológica real. Onde o ambiente é disforme, há desconforto porque o caos é vigente, e do caos não se pode esperar nada de bom. E essa é realmente a sensação quando se anda pelo centro da cidade. não é a toa, como já explorei naquele outro artigo, que o centro tenha se tornado uma cracolândia.
Olá Fabio. Achei excelente o este artigo e gostaria de compartilhar algo de minha experiencia.
A pouco tempo atras me pus numa cruzada contra o utilitarismo e brutalidade arquitetônica quando tentei impedir meus pais de eliminar um belo jardim existente na frente de nosso prédio. Os argumentos em favor da obra eram reduzir os custos de manutenção e preservar as estruturas do concreto. Apesar de todos meus argumentos e disposição de arcar com todos os custos de um projeto não tão brutal eu perdi a batalha e o feio prevaleceu tornando o prédio algo triste de se ver. Meus pais são pessoas simples nascidos no início da década de 40 e fazem parte de uma classe média que dispõe de muito conforto, e me é interessante como esta busca pela utilidade impregnou tão fortemente a mente das pessoas em geral. Este é apenas um dos muitos casos que poderia relatar aqui e que se reforçam seu artigo muito bem colocado.
As pessoas tornam o mundo ao seu redor cada vez mais bruto em nome utilidade, se espantam com o resultados mas não se dão conta de que elas produzem tudo isto.
Infelizmente isso é uma coisa muito comum, especialmente com essa geração que teve uma formação positivista. Por outro lado, tem muita gente despertando para o problema, e aqui no Brasil tem havido um imenso renascimento intelectual e artístico que acho que não tem mais como ser parado. Por outro lado, até que tenhamos os meios materiais de reverter as coisas, temos que seguir estudando e mostrando para as pessoas que a beleza importa! E parabéns pela sua luta, nenhuma guerra é feita de uma batalha isolada, então sigamos! Um abraço!