O significado do Abaporu que nem a Tarsila do Amaral percebeu

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Durante muitos e muitos anos, passei a vida colecionando os problemas comportamentais e cognitivos do brasileiro. Com isso, criei uma verdadeiro catálogo mental de vícios e fraquezas que permeiam todo o imaginário nacional. Com tudo isso circulando numa alta velocidade repetitiva no meu dia-a-dia, com todas as observações e percepções voltando e assediando a minha existência o tempo todo, inevitavelmente resolvi ir embora.

Essa foi a melhor coisa que fiz, porque foi o que me permitiu vislumbrar qual é o problema real do Brasil. Porém, o estalo mesmo foi quando reparei no que estava dizendo o Abaporu, famoso (e infame) quadro de Tarsila do Amaral e que é o símbolo do movimento modernista iniciado na Semana de Arte Moderna de 22.

Eu sempre insisto que a arte só tem valor quando é vista com os próprios olhos, e não pela crítica especializada. O que os meus olhos veem é que o Abaporu significa o sentimento do brasileiro comum em relação ao seu meio ambiente, numa luta que é inevitavelmente perdida.

Se isso te parece meio estranho, é porque você deve estar acostumado às interpretações padrão da nossa incrivelmente culta classe intelectual e artística. Então segue o fio.

O Abaporu, de Tarsila do Amaral

Esse é um daqueles momentos da história que o sujeito capta uma mensagem completamente verdadeira e, logo em seguida, a interpreta de uma maneira absurdamente equivocada. O Abaporu é exatamente isso. A sua mensagem é de uma realidade contumaz, entretanto, nem a autora e nem os seus contemporâneos entenderam o que estava acontecendo. Não entender o que você mesmo quis dizer é um problema normal no Brasil e não se restringe só a pintores. Então, sem novidades, por enquanto.

Até hoje, todas as interpretações comuns da obra se resumem a chavões marxistas. As mais esdrúxulas talvez sejam as dos próprios modernistas. Por exemplo, Oswald de Andrade, o maior agitador do movimento de 22, dizia “É excepcional este quadro, é o homem plantado na terra.” O homem plantado na terra? É sério isso? E dizem que na época não circulava droga forte por aí. Ainda, na mesma reportagem, seguem com o seguinte raciocínio:

No mesmo dia, Oswald mostrou o presente para um de seus amigos, o poeta Raul Bopp (1898-1984). E juntos começaram a enxergar ali, naquela figura enigmática, um índio canibal, um homem antropófago, aquele que iria devorar a cultura para se apossar dela e reinventá-la.

Esse povo era doido. Para o cara olhar ali e ver um canibal naquela figura jogada no chão e castigada pelo sol, vai imaginação. Eu não sei pra você, mas pra mim um canibal é um predador, e não uma vítima! Na verdade, a motivação desse tipo de interpretação era totalmente ideológica e eles precisavam de alguma coisa na qual pudessem colocar a visão da própria alma e usar como símbolo para o que queriam espalhar. Só que para a mensagem pegar, ela precisa ter um fundo de verdade, e isso o Abaporu tem. Só não tem nada a ver com a mensagem ideológica.

Tarsila do Amaral não hesitou em permitir que sua obra virasse panfleto ideológico

Essa foi a função que tomou o Abaporu. De um cara pelado no sol junto de um cacto, vítima da circunstância, ele virou um canibal plantado no chão querendo acabar com toda a cultura. Canibal plantado no chão seria uma espécie de planta carnívora? Não sei, talvez faça mais sentido. Só que os modernistas gostavam de não fazer sentido, então tá valendo.

No fim das contas, a própria Tarsila do Amaral não sabia o que estava pintando. A evidência disso é o nome do quadro, que também tem a ver com canibalismo. Pobre Abaporu. Assim, como todo símbolo revolucionário, foi usado na propaganda. Mas ele só queria um chapéu e um copo d’água.

Dali por diante, conforme o próprio tema do modernismo, valia tudo. Enquanto o coitado do Abaporu queimava no sol, ele virou símbolo do proletário oprimido. A interpretação mais comum, hoje em dia, é tipo essa que encontramos no site Cultura Genial. Esse site é um compêndio de todos os chavões mentais que tomaram conta da classe educacional, acadêmica e cultural brasileira. Como de costume, tudo se resume a alguma simplificação marxista e panfletária, como isso:

Por outro lado, a cabeça pequena pode significar a falta de pensamento crítico, que se limita a trabalhar com força, mas sem pensar muito, sendo então uma possível crítica à sociedade daquela época.

Uau! A cabeça pequena simboliza a ‘falta de pensamento crítico’. Estou pasmo com tamanha originalidade! Sabe o que isso significa? Que o Abaporu não lia o Cultura Genial! E isso quando não tem umas pérolas do simplismo, como esse trecho:

Quanto às cores usadas em Abaporu, parece haver uma clara alusão à cultura brasileira pois há destaque para o verde, o amarelo e o azul, cores predominantes da bandeira do Brasil.

Se tiver verde, azul e amarelo numa cena, ela quer dizer que reflete o patriotismo brasileiro? Se isso não é de um provincianismo mental acachapante, eu não sei mais o que é.

Isso é tentativa de homicídio por tédio

Esse povo é pior que papagaio. Mas calma que não acabaram de espancar o pobre Abaporu. Depois de maltratarem o bichinho, ainda quiseram colocá-lo num concurso de miss universo. Vejam essa pérola magnânima, uma verdadeira obra de arte, coisa de quem tem uma cultura genial mesmo!

Muitos críticos de arte costumam associar a tela de Tarsila do Amaral a célebre escultura O Pensador, de Rodin, alguns chegam a sugerir que Abaporu é mesmo uma releitura da famosa peça do escultor francês.

Igualzinho! Como é que nunca reparamos nisso?

Eu tô imaginando o cara do Mundo Canibal lendo esse artigo do Cultura Genial!

E, depois, a ira conservadores

Já começo a entender a ira canibal do Abaporu. Depois de ter sido escravizado pela própria mãe, foi avacalhado pelos inimigos dela. Como todas as obras dessa época serviram como inspiração para o movimento revolucionário que se seguiu, é perfeitamente natural que elas sejam execradas pelo movimento conservador. Assim, o Abaporu vai virando uma batata-quente no meio do problema cognitivo do Brasil.

Porém, até hoje, tudo o que eu ouço no meio conservador é que a obra é ruim porque os traços são infantis, que as imagens são deformadas, que falta técnica e coisas desse tipo. Tudo não passa de crítica à técnica ou à estética, que é o bom e velho parnasianismo combatido, com razão, pelos modernistas. Só que a verdade é que, para variar, os conservadores não entenderam nada porque têm esse hábito nefasto de cultuar a estética materialista, coisa que aprenderam direitinho com o Roger Scruton. Talvez por isso é que eles só consigam pensar em imagens barrocas de santos. Cada um com suas limitações.

Aqui a metralhadora é giratória, sobra bala pra todo mundo!

Se o Abaporu é tão ruim, por que não existe uma crítica devastadora sobre ele?

O fato é que nunca vi uma crítica realmente destrutiva à obra. Toda crítica é sempre frescura do tipo time de futebol. Entretanto, eu entendo uma parte do que querem dizer. Coitado do Abaporu, ele é feio mesmo. Parece um desenho de criança ou de alguém com deficiência mental. Ele não é uma figura que dê prazer a quem o vê e isso realmente cria uma sensação de que ele seja somente uma aberração da arte contemporânea. De certo modo ele é isso mesmo, mas não é esse o ponto. Isso é só metade da história e, como eu sempre insisto, a estética é só uma parte da arte e a estética ruim também tem função, afinal o mundo não é só é beleza.

Mas tenha um pouco de compaixão com o pobre Abaporu, essas coisas não são culpa dele. O coitado nasceu feio porque ele representa uma realidade feia. No Abaporu está representando, simplesmente, o problema mais grave e profundo do Brasil. Talvez isso explique porque os esquerdistas atribuam a ele uma figura de opressor (o canibal) e oprimido (cabeça pequena, plantado no chão) ao mesmo tempo. É o ódio total à própria situação, que é um resumo do pensamento revolucionário. Para os conservadores, ele é o espelho da realidade interior, que é a mesma e tão feia quanto à dos esquerdistas. No Brasil, todo mundo odeia a própria situação.

Qual é o problema do Brasil, então?

Vamos dar uma olha da no Abaporu, mas sem crucificar o coitado por causa da mãe dele. Não é todo mundo que tem o azar de ser parido pela Tarsila do Amaral.

A primeira coisa que chama atenção é o sol, quente, forte, seco e bem próximo à cabeça do Abaporu. Não é de se espantar que ela esteja murcha. Agora, vamos sair da frente dessa tela de celular e dar uma volta na rua, no meio do verão. Quem mora no Brasil conhece a sensação. Parece que o sol está a vinte centímetros da cabeça. Em alguns minutos nessa caminhada, seus braços começarão a queimar. Mesmo destino fatídico terão o nariz, o rosto e o pescoço.

Todo mundo conhece a piada:

– E aí fulano, tá todo vermelho. Foi na praia?

– Quem dera, fui no centro pagar um boleto!

Passo após passo, o calor causa a sensação da cabeça diminuída. Depois de alguns minutos no sol, você só pensa em se refrescar, conseguir alguma água e uma sombra. Seus pés parecem maior que o resto do corpo e pesam uma tonelada, queimando dentro do sapato. Todo mundo passa por isso no Brasil. No auge do verão, a sensação é de derretimento mesmo. O pobre Abaporu está nitidamente derretendo pelo sol, como todo bom brasileiro que vai no centro pagar um boleto.

O efeito do calor e da luminosidade extremos

No calor você não tem como refinar as suas percepções. Você vai ver cores chapadas porque a imagem é ofuscada pelo excesso de luz e porque sua cabeça já murchou faz tempo. A gente entra num estado de sobrevivência, e as cores mais fortes passam a chamar mais a atenção por instinto.

Por que o cacto? O cacto é símbolo da solidão no deserto por excelência. É a única coisa que sobrevive no calor e secura extremos. Ele é um símbolo do destino do Abaporu. A sua única saída na vida é se tornar um vegetal inerte, que sobrevive ali sem fazer nada, inclusive reclamar. O cacto aceitou o seu fardo e aceitou ficar ali, congelado no calor, vegetando, em troca de permanecer fisiologicamente vivo.

A posição fetal indica que a luta já foi perdida. Os pés e as mãos ficaram pesadas e o coitado sentou no chão. Ainda assim, a cabeça continua colada ao sol, que o castiga implacavelmente mesmo depois de ter se rendido. Sem roupa, ele não tem nenhuma proteção. O Abaporu é uma vítima indefesa do ambiente implacável, sem o menor indício de reação e que se torna cada vez mais parecido com o cacto, a única coisa que tem em vista.

O Abaporu é um sujeito que foi derrotado pelas condições adversas do ambiente, e só isso.

O Brasil não tem inverno

E o que isso tem a ver com o problema cognitivo do Brasil? Esse ambiente cria uma falha simbólica. Falta um elemento chave que rompe a opressão do ambiente.

Aqui, o ciclo de insolação extrema se repete dia após dia, quase sem trela. O Brasil não possui estações, apenas uma parte do ano que é menos quente na maioria de suas regiões. Quais são as chances de alguém morrer de frio por aqui? A menos que você seja um idoso ou um morador de rua debilitado e sem uma coberta, são praticamente nulas. O frio, no Brasil, quase nunca é um problema. Você sabe que meio dia vai fazer calor, independentemente da época do ano. Todo dia o sol vai esquentar esse lugar e, na maior parte do ano, ele vai é te castigar. Mesmo no inverno é preciso usar protetor solar.

Esse clima cria um estado psicológico que não tem um ciclo anual, apenas um ciclo diário de noite e dia. Foi isso que aprendi morando na Europa. Lá, você vê claramente as coisas morrendo e depois nascendo de novo. O frio leva tudo, acalma as coisas, depois elas nascem e voltam a vibrar no verão. Também se nota facilmente a dança que o sol faz pelo céu no decorrer do ano. Aqui não, o sol sempre parece estar a pino.

No Brasil só existe o verão, tudo tem que vibrar o tempo todo. As coisas não morrem depois voltam, elas estão totalmente vivas o tempo todo e sem nenhuma pausa. Por esse motivo, o brasileiro não tem alguns meses de introspecção. Na Europa, você é obrigado a passar um ou dois meses enfiado em casa. Lá é imperativo sossegar o facho por um tempo, porque a natureza te obriga.

O sol é implacável e somos todos Abaporu

Aqui, não. A própria natureza não dá descanso. O Abaporu é somente isso. É o coitado que sucumbiu à condição da natureza e que agora está lá pelado, indefeso, mediante os caprichos do sol. Esse ciclo se repete diariamente, sem trégua, sem esperança de que isso vá mudar em junho. Você já sabe que estará sujeito a isso sem parar, por toda a sua vida e sem esperança.

O sol condena o brasileiro. Apesar disso tudo parecer ser uma descrição do sertão do nordeste, ela é válida em quase todo o território nacional. O interior de São Paulo, especialmente nos centros urbanos, tem essa sensação opressiva do sol o tempo todo.

Porém, repare que a única coisa que não murchou na cabeça do Abaporu foi o nariz, que inflou até virar um falo pendurado na cara. Dê uma olhada no carnaval, o retrato típico do Brasil, e verá exatamente isso. Pessoas peladas derretendo no calor com a cabeça murcha e os impulsos sexuais na cara, completamente expostos. A depressão também está lá, mas escondida pela fantasia. #somostodosabaporu

Qual é a solução para o problema do Brasil, então?

O fato é que não existe um período de introspecção na cultura brasileira porque o ciclo natural não é favorável a isso. Quando ainda se tentava incorporar elementos europeus na nossa cultura, isso era parcialmente suprido. Entretanto, como um dos objetivos do movimento modernista era cortar esses laços, na verdade eles serraram o galho em que estavam sentados.

Tudo isso foi proposital, é óbvio. O próprio fato de se lançarem como movimento antropofágico já revelava a sua fúria assassina, típica dos revolucionários desde o terror da Revolução Francesa. O objetivo de Oswald de Andrade era abertamente de conduzir o Brasil ao tribalismo, coisa que o próprio exerceu quando se juntou à agitadora Pagu. Tentaram transformar isso num eufemismo através do termo primitivismo, mas acabou bem mal disfarçado.

Entretanto, quando os modernistas fizeram sucesso, eles conseguiram abolir a resistência à natureza. O problema está precisamente aí. Quando isso foi feito, o Brasil caiu sentado debaixo do sol, começou a derreter, a cabeça murchou e surgiu um pinto no meio da cara. No fim das contas, tudo o que conseguiram foi transformar o Brasil num mar de vítimas de sacrifício humano para o sol, de uma vez por todas.

O Abaporu é, simplesmente, o diagnóstico perfeito da situação. O seu sucesso se deve ao fato das pessoas terem olhado para ele e se identificado, mesmo pensando as coisas mais estúpidas a seu respeito. Isso, realmente, torna a Tarsila do Amaral uma artista bem sucedida. Afinal, até hoje falam dela.

No fim das contas, o que o quadro revela é que o real problema do Brasil parece ser a falta de um elemento simbólico básico da psique humana, que é o inverno. Talvez a saída esteja numa arte que consiga trazer esse simbolismo de uma maneira inteligível para a maioria da população, e não em uma que simplesmente desistiu de viver.

Por que a Tarsila do Amaral fez tanto sucesso?

Levantar um símbolo que apele para aquilo que as pessoas não conseguem dizer é o segredo para a arte de sucesso. Isso foi exatamente o que fez a Tarsila do Amaral com o Abaporu. Nessa obra, ela conseguiu pôr o sofrimento que todo brasileiro sente numa tela. Apesar de todo o desprezo que se possa sentir pela Tarsila do Amaral como pessoa, há que se reconhecer que sim, ela acertou na mosca.

Entretanto, já tinha todo um exército intelectual pronto para transformar a obra em panfleto. Se, naquela época, houvesse uma classe conservadora preparada para usar a obra modernista a seu favor, a história do Brasil teria sido diferente. Ao contrário, sobraram a indignação, a revolta e as batidinhas de pé do Monteiro Lobato. Mas, infelzimente, todos sabemos que essas coisas são típicas do movimento conservador e são uma seqüela da tara por purismo.

Isso nos leva a um outro problema, que é a necessidade de um movimento cultural que seja uma resposta à Semana de Arte Moderna de 1922. No entanto, ainda não temos artistas suficientes para isso e, pior ainda, os que existem não estão ligados por uma cultura homogênea.

Porém, há que se pensar. Quando, eventualmente, surgir essa classe artística, quais instrumentos ela usará para inserir o elemento faltante na cultura brasileira?

Mas, tudo o que sei, até o momento, é o que o maior problema do Brasil é a insolação.

Se você gostou desse artigo, não deixe de conferir o que escrevi sobre o simbolismo do inverno!

Fábio Ardito

Pelo mundo atrás de treta.

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