O simbolismo do inverno

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É muito difícil que alguém que tenha passado toda a vida no Brasil consiga entender corretamente o que simboliza o período do inverno. Isso acontece porque, aqui, essa estação do ano não é completa. Por isso, o significado do inverno não é um símbolo presente na nossa cultura.

Entretanto, sempre acho que a melhor maneira de explicar as coisas é com exemplos. Por isso, vou contar a minha história no inverno da Itália. No final a gente vai ter uma boa ideia de tudo o que o inverno simboliza, eu garanto! Então senta que lá vem história!

Minha experiência no inverno europeu

Em 2019, me mudei para a Itália para fazer o meu processo de reconhecimento de cidadania. Escolhi viajar no dia 21 de novembro, assim chegaria lá no início do inverno.

Quando desci do avião em Roma, o tempo ainda estava razoável. Um pouquinho frio, mas nada demais. Duas semanas depois, enquanto dava um jeito de alugar um apartamento, a coisa começou a apertar e as temperaturas foram caindo rapidamente.

Dos 10°C de quando cheguei, agora as noites atingiam -5°C. Nessa altura, eu ainda estava “morando” num hostel no centro de Perugia, na Umbria. Nessa situação, você passa a maior parte do tempo na rua, já que um box de hostel não é exatamente aconchegante.

Foi aí que o negócio começou a apertar e eu fui entender o que realmente simboliza o inverno. A primeira sensação é de que, se você ficar nessa situação, vai morrer. Se ficar uma noite na rua, já era. Um abrigo é uma questão de sobrevivência. O frio realmente mata, ao contrário do calor. O frio te obriga a se recolher num abrigo por questão de sobrevivência.

Aqui no Brasil raramente alguém vai pensar em morrer se ficar uma noite na rua. Quando era adolescente, era comum virar as noites aprontando com os amigos na madrugada. No inverno da Itália, que nem é tão rigoroso, isso já seria impensável.

O meu retiro

Até que enfim aluguei um apartamento. Mas tinha um problema, levaria uma semana para ligar o gás, o que significa que eu estava sem aquecimento já no pleno inverno. Em Perugia não nevou naquele ano, mas a grama congelava durante a noite, e de manhã eu via o gramado branco congelado no meu quintal.

Enquanto eu não tinha aquecimento, aquilo era meio sombrio. Qualquer hora viro grama congelada, pensava. A solução era me enfiar embaixo da coberta, pegar o meu Kindle e começar a ler. Naquela semana eu li, numa paulada só, Crime e Castigo do Dostoievski.

Depois de uns dias, ligaram o gás, até com certa antecedência. Agora eu podia ficar quentinho lá dentro. Porém, do lado de fora, a coisa ia ficando cada vez mais fria.

O inverno simboliza o fim e o começo de um ciclo

O que se nota, vendo esse processo, é como as coisas vão morrendo. As folhas das árvores caem, o mato seca, a grama se retrai e os insetos desaparecem. No meu apartamento não aparecia nem formiga.

O mundo é colocado num congelador, literalmente. Tudo o que está exposto ao tempo morre ou hiberna. A paisagem fica seca. Pelo menos eu estava quentinho dentro do apartamento, apesar de o gás ser uma facada na Itália (pergunte como eu descobri isso!).

Mesmo tendo um canto aconchegante, não dá pra ficar passeando do lado de fora. Levei roupas pesadas pro inverno já prevendo isso e, mesmo assim, era difícil ficar na rua muito tempo. O centro histórico, que é a parte mais legal de Perugia, tem um vento incrivelmente frio e cortante, que te impede de ficar por lá por muito tempo. Por isso, as pessoas correm pra casa assim que possível.

Nesse período, você é obrigado a ficar confinado. Seja em casa ou seja no trabalho. Porém, como é fim de ano, as pessoas costumam ficar mais em casa.

Mas eu, como estava em processo de obter a cidadania, tinha que ficar em casa de todo modo e foi, por isso mesmo, que decidi ir no inverno. Já que teria que ficar em casa, melhor ficar no inverno do que ver todo mundo na rua no verão enquanto eu ficava preso em casa. No meu recolhimento, saía pra ir no mercado e voltava correndo ou fazia alguma incursão no centro ou um passeio de minimetrô pra matar o tédio (de frio, obviamente).

Oportunidade de introspecção e estudo

Nesse cenário, eu não tinha muita opção. Então peguei minhas coisas e comecei a estudar filosofia. Devo ter estudado algo em torno de umas 4000 páginas! Tudo devidamente anotado e digerido!

Também, nessa época, li várias obras de ficção. Terminei de ler três livros do Machado de Assis para finalizar os romances, mais uns três do Eça de Queiroz (que eu achei uma porcaria!), Crime e Castigo e mais algumas coisas avulsas. Ao todo, devo ter lido pelo menos uns 15 livros s´´o de ficção nessa época.

A sua circunstância é o material a partir do qual você vai desenvolver a sua personalidade. Isso me incentivou a prestar ainda mais atenção ao ambiente e à minha circunstância.

O que simboliza o sol no inverno

Então, comecei a reparar melhor no papel que o sol possui sobre a minha vida naquele momento. No auge do inverno, que ocorre no Natal, que é a noite mais longa do ano no hemisfério norte, o sol se põe lá pelas quatro da tarde. Nessa época, às cinco já não tem mais ninguém na rua por que já está escuro e frio. Às seis já está todo mundo dormindo. Dá sono cedo mesmo, é muito natural. O repouso é bastante prolongado no inverno.

Aqui no Brasil, eu trabalhava como pesquisador no Laboratório Nacional de Luz Sincrotron. Não era incomum ter que virar uma noite ou outra no laboratório e uma coisa que eu sempre reparava era que sempre que o sol ainda estava acima do horizonte, eu sentia pouco sono. Quando ele se punha, minha disposição ia junto. Esse efeito acontecia mesmo que eu não o estivesse mais vendo pela janela.

A luta para ficar acordado terminava quando ele surgia pela manhã, e assim conseguia passar o restante do dia sem muitos problemas, até o próximo crepúsculo. Por esse ponto de vista, dormir cedo porque o sol se põe cedo faz todo sentido.

O sol dita o ritmo da vida

Durante o inverno na Itália, senti a mesma coisa. A gente vai seguindo, querendo ou não, o ritmo do sol. Isso é uma coisa muito natural e de se esperar, já que toda a energia do planeta vem dele. Digo energia em sentido físico, jamais uso o sentido esotérico porque ele é feito apenas para bater carteiras.

Veja bem, se tem vida no planeta Terra, é porque ela é aquecida pelo sol. A coisa é tão simples quanto isso. Quem aquece a Terra é a luz que chega do sol, então é evidente que a luz tenha uma conotação de vida.

Quando essa luz diminui, obviamente que o nosso ritmo também tende a diminuir. Nós somos conduzidos pelo sol, queiramos ou não.

Resumindo o que simboliza o inverno

Dessa história toda, podemos tirar alguns elementos que serão comuns a todo mundo que experimentar o inverno de verdade.

A primeira coisa a ser notada é que, no inverno, o mundo morre um pouco e se recolhe. As árvores perdem as folhas, os insetos hibernam, os animais se escondem. Em outras palavras, a vida se torna mínima porque o sol deixa de estar presente. A energia do mundo, em sentido físico, diminui.

O mesmo acontece com a gente. Não podemos ficar do lado de fora. Assim como os outros animais, precisamos nos recolher em nossas casas, abrigados do frio de alguma forma. Não há mais como produzir o próprio alimento, e vivemos das coisas que juntamos durante as outras estações.

Por conta disso, o ciclo de trabalho diminui. Ficamos mais tempo em casa, recolhidos. Por não termos necessidade de trabalho como em outras estações, o tempo se torna propício a outras atividades.

O inverno simboliza o recolhimento, a auto-avaliação e o planejamento

O inverno é o tempo em que os gênios se recolhem para planejar e preparar o que vai ser executado na primavera. Muitas sinfonias foram escritas nessa época, assim como teorias da física e da matemática. Os planos para o restante do ano são feitos no inverno. A primavera é época de plantar e o verão a de colher, aproveitar a vida e se preparar para o próximo inverno.

Esse retiro tem uma função primordial na psique humana, que é parar, observar as estações passadas, refletir sobre o que foi feito e sobre o que virá, para que se floresça junto com a primavera, que também tem o seu simbolismo. No inverno, a alma humana pode preparar as suas sementes para o plantio.

Por conta disso, no inverno do hemisfério norte o Ano Novo faz sentido, porque ele é, de fato, um novo início. Conforme as noites vão se tornando menos longas, sentimos as nossas energias voltando e a vontade de executar os planos que fizemos no retiro.

O que acontece se não temos inverno?

Sem o inverno, perdemos essa noção de retiro, avaliação, planejamento e recomeço. Num país como o Brasil, esse ciclo simplesmente não existe. Aqui o calor nos castiga o ano todo.

O calor significa energia (sempre no sentido físico, jamais exotérico), que quer dizer movimento. Como aqui o calor é sempre constante, estamos sempre no ritmo frenético. Pode notar, o brasileiro não tem um mês do ano em que ele se recolhe e pára para refletir.

O Ano Novo no Brasil não faz sentido. Ninguém sente um recomeço a não ser pelo feriado mais prolongado do ano. Entretanto, não pode haver recomeço sem um fim de um ciclo anterior, que nunca acontece. O Ano Novo brasileiro é só uma pausa para descanso até o carnaval.

Além disso, os dias mais curtos no hemisfério sul ocorrem em julho. Portanto, esse seria o mês ideal para se festejar a mudança de ciclo. Entretanto, aqui o inverno não tem força suficiente para fazer com o que o símbolo apareça claramente a todos.

Como já apontei antes, acredito que esse seja um dos problemas principais da cultura brasileira. Aqui as pessoas são incapazes de um período de introspecção. Geralmente, brasileiros surtam no inverno europeu porque não toleram o silêncio e a quietude do inverno, basta procurar e vai achar um monte de brasileiros se queixando no Youtube. Vi um monte disso enquanto morava na Itália.

Esse período que passei recolhido me fez muito bem. Pude estudar muitas coisas e decidir sobre o rumo da minha vida. Isso parecia impossível de fazer aqui no Brasil. Sem essa necessidade de recolhimento, de baixar a temperatura, tudo toma uma urgência desnecessária que só atrapalha.

Tudo isso é o que o inverno simboliza e a falta que ele faz na nossa cultura. Como o Brasil pode superar isso? Bom, esse é um dos trabalhos de investigação desse blog.

Fábio Ardito

Pelo mundo atrás de treta.

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