Todas as coisas criadas pelo homem são, por definição, apoiadas nas suas crenças metafísicas. Isso, de fato, não deveria espantar ninguém. O problema é que algumas coisas são tomadas por certezas absolutas por tanto tempo que, no final de uns bons séculos, ninguém mais nem lembra que elas existem. Essas crenças, então, vão para o fundo do baú cognitivo mas não são esquecidas, ao contrário. Parece que quanto menos verballizadas e externalizadas mais ativas elas ficam. No fundo, é o mesmo mecanismo de uma neurose, com a ressalva de que são crenças amplamente difundidas, então a quantidade de indivíduos que crê é uma parcela significante da população. Isso, talvez, seja o tal do inconsciente coletivo do Jung.
O fato é que as pessoas agem de acordo com postulados ocultos – e esquecidos. Alguns podem até ter sido esquecidos de propósito, e é nisso que consiste técnicas de manipulação social, com o exemplo mais evidente sendo o Antonio Gramsci. Estou dizendo essas coisas só pra mostrar o quanto é importante fazer uma análise profunda de tudo o que é preciso crer para aceitar coisas que são tidas como auto-evidentes e o quanto da realidade se esconde por trás de coisas que tomamos como absolutamente certas.
Para demonstrar isso que estou falando, resolvi investigar uma coisa que consumiu uma década e meia da minha vida, o método científico. Sou formado em física e fui pesquisador no maior laboratório da América Latina, então o método científico era parte da minha vida cotidiana. Só que tinha uma coisa meio esquisita nisso. Desde o primeiro dia de faculdade até o meu último dia de laboratório, nunca vi uma aula intitulada ‘O método científico’. Ele sempre foi dado como algo óbvio que não precisa de discussão. As pessoas aprendem a se comportar dentro do esquema do método científico no meio acadêmico.
Veja bem, leitor. Se alguém não é ensinado conscientemente algo, ele é condicionado, como um cachorro a fazer xixi no lugar certo. Os cientistas contemporâneos, pelo menos em todos os lugares onde tive alguma vivência, absorvem o método científico comportamentalmente. Seu orientador manda você pesquisar a literatura especializada, depois manda você pro laboratório fazer medidas, manda fazer gráficos, manda confrontar com a literatura e manda escrever alguma coisa com os resultados. A cada etapa bem cumprida você recebe um gesto de aprovação, exatamente como um cachorrinho. Depois de fazer isso algumas vezes, e de ver dezenas de apresentações com a exata mesma estrutura, o estudante acaba absorvendo – meio por osmose, meio por reflexo condicionado; o tal do método científico.
No fim das contas, quem faz as coisas porque foi ensinado e não por esforço intelectual, é um técnico. Não tem nada demais nisso, mas o que vi no meio acadêmico é que os cientistas eram apenas técnicos treinados dentro de um molde razoavelmente rígido. O problema, pra mim, é que a minha vocação não é de técnico. Foi por isso que optei por sair, porque eu procurava algo mais do que um trabalho que me desse conforto em troca de 16 horas do meu dia. Então, voltei pra casa e comecei a pensar nas coisas. Só estou contado essa passagem da minha vida para demonstrar o quanto essas coisas podem ser difíceis de desenterrar e o impacto profundo que elas podem ter sobre a gente. Veja bem, eu vivi uma década e meia sem me tocar dessas coisas, apenas com uma sensação não verbalizada de que algo estava essencialmente errado.
O ponto de partida dessa investigação, como de costume, é a descrição do que se está vendo. Com isso feito, o passo seguinte é começar a questionar o que é preciso para que essa coisa se sustente. O método científico no fundo, nada mais é do que uma seqüência de passos que permitam confrontar hipóteses com algo do mundo material. Pode-se pegar qualquer coisa como exemplo, como a lei da gravitação newtoniana. Supõe-se que os corpos se atraiam proporcionalmente à sua massa, e que a força seja inversamente proporcional ao quadrado do inverso da distância. Em seguida, se aplica essa hipótese, como um postulado, a casos reais e compara-se a expectativa com o resultado. Se a expectativa coincide com a realidade, dentro de uma margem de precisão considerada suficiente, então a hipótese é aceita, ao menos provisoriamente, enquanto não surge outra mais precisa.
Agora, a gente pode ir destrinchando esse negócio. Em primeiro lugar, eu tenho que postular, quer dizer, assumir como verdade provisória, que exista uma ordem comum por trás das coisas. Postular coisas é um método de investigação intelectual muito comum. Assume-se que algo seja verdade só para ver no que dá. Nesse caso, estou supondo que tudo quanto existe esteja sujeito a um conjunto de leis bem definidas, ou seja, que todos os objetos materiais esteja sujeito à lei de atração gravitacional.
À primeira vista, isso parece muito razoável. Mas será que a realidade toda funciona mesmo assim? Se a gente olha para os planetas e seus movimentos, por exemplo, parece que sim. O seu movimento no céu, para um observador terrestre a olho nu, é algo muito bem definido e conhecido por culturas ancestrais. Isso, sem dúvida, é uma das origens dessa crença. Por outro lado, quando a gente começa a olhar aqui perto do solo, as coisas não parecem ser muito desse jeito. Aqui, tudo parece uma mistura caótica e, na verdade, é até difícil de saber de onde o Newton tirou a lei da inércia, já que não é possível que ela seja observada experimentalmente.
A realidade parece ser, na verdade, uma mistura de ordem e caos. Então, aqui, a gente já tira uma conclusão importante: o método científico trata de uma parcela da realidade, que é aquela que pode ser descrita por leis regulares. Acontece que nem tudo é assim, especialmente as coisas de natureza imaterial. A própria física admite isso. A segunda lei da termodinâmica é uma confissão da componente caótica do universo, mas ela é tratada também como uma lei. Ou seja, o caos é tratado como uma parte dentro da ordem. Assumir certos postulados sem saber suas limitações tem desses problemas, a gente sempre cai em paradoxos.
Em segundo lugar, é preciso postular que todas as coisas possam ser quantificadas. Veja que, para avaliar se um evento corresponde a uma explicação teórica, é preciso de um ponto de contato entre as duas coisas. Então, a teoria tem que pegar certos parâmetros do mundo real, manipulá-los e cuspir um resultado que possa ser comparado com experimentos feitos com objetos reais. No caso da gravitação, pega-se as massas e as distâncias.
Nesse caso, os objetos do mundo real foram reduzidos ao que chamamos, tecnicamente, de objetos físicos, que são representações que manipulamos a partir da teoria. Portanto, para que algo esteja sujeito ao método científico, ele precisa ser quantificável. Agora, podemos fazer como no postulado anterior e questionar o quanto isso é verdade. Será que a gente consegue mesmo colocar uma quantidade em tudo? Ou existem aspectos das coisas que não podem ser quantificadas? A gente consegue atribuir um número à uma intenção? Ou essas coisas se reduzem, mais uma vez, a uma parcela restrita da realidade? Acho que o leitor já percebeu que, de novo, estamos recortando a realidade mais um pouco.
E vamos adiante, que isso é um ensaio, não um livro. Cientistas publicam seus resultados por um motivo muito simples, creem que outros cientistas possam replicá-los. Em tese, eu posso pegar qualquer conhecimento científico e testar por mim mesmo. Um cara que teste a lei de atração gravitacional no Japão deve obter os mesmos resultados que outro que faça exatamente a mesma coisa na Zâmbia. Aqui entra o terceiro postulado: observadores diferentes são capazes de chegar às mesmas conclusões se seguirem os mesmos passos.
Sendo honesto, esse postulado é o que parece ser o mais sólido de todos, justamente porque ele vai contra o subjetivismo kantiano. Isso quer dizer que as coisas não ocorrem na cabeça das pessoas, mas num lugar exterior. Se dois observadores observam as mesmas coisas dadas que as condições sejam as mesmas, quer dizer que as conclusões estão, a princípio, nas coisas e não nas suas cabeças. Ainda mais impressionante é que, nesse sentido, o método científico tem por mérito remover qualquer componente exclusiva do observador, como o humor, por exemplo. Assim, a ciência precisa ser impessoal para ser verdadeira. Só que, novamente, isso leva a um recorte. A realidade também é composta pelas impressões pessoais. Então, a ciência, por definição, não pode lidar com nenhum aspecto que dependa das noções subjetivas do cientista, e isso leva a problemas estruturais da aplicação do método científico a campos como a psicologia, por exemplo.
Por fim, a quarta coisa que precisamos postular é que a todo efeito corresponda uma causa. O quarto postulado é, na verdade, o que se chama de lei de causalidade. No fundo, tudo o que o método científico faz é estabelecer relações entre causas e efeitos. Elenca-se uma série de eventos e faz-se hipóteses teóricas que sugerem uma possível causa. Depois, testa-se essas hipóteses de acordo com os postulados anteriores e descarta-se as que sejam mais imprecisas. Porém, se a cada efeito corresponder mais de uma causa, o método falha porque nele está implícito a unicidade de correlações de causa e efeito. A solução então, é supor que existam mais causas envolvidas, fatiar o problema mais uma vez e testar novas hipóteses.
Isso, surpreendentemente, funciona muito bem dentro do aspecto material da realidade, e talvez seja o grande responsável pelo sucesso do método científico nos últimos séculos. Porém, como já e costume nesse artigo, se a gente olhar um pouco além desse aspecto da realidade, descobrimos que ele também é um recorte. O contra-exemplo mais latente da lei de causalidade talvez seja qualquer ser que tenha vida. Acho que é evidente o suficiente que a vida não pode ser reduzida a uma causa única, e sim a um conjunto de coisas que ocorram sincronizadamente, umas dependendo de todas as outras. Se apenas um aspecto de um ser vivo falha, ele morre. É claro que se pode chamar isso de causa mortis, mas o que cessa quando uma vida se extingue parece ser a sincronia entre suas partes, já que qualquer uma falhar afeta todas as outras, inclusive a parte imaterial. Isso seria assunto pra outro artigo, e é o grande abacaxi por trás da aplicação do método científico à medicina, mas já deu pra pegar que, mais uma vez, chegamos num recorte.
A moral da história é que o método científico nada mais é que um recorte minúsculo da realidade. O problema é que a gente se esqueceu disso, e também se esqueceu de todas as discussões filosóficas e metafísicas por trás de cada um desses postulados. Pra piorar ainda mais a situação, o método científico gerou a revolução tecnológica e industrial que moldou o mundo em que vivemos atualmente. Por isso, a impressão é de que a realidade se reduza aos bens materiais, e aí a ciência acaba ganhando ares de divindade. Mas é bom lembrar que existe muito mais do que isso, e que é urgente encaixarmos a ciência e as suas obras no seu devido lugar metafisico, que não é o centro da existência humana.