Não precisa ser muito esperto pra notar que a base da fotografia abstrata é a abstração. Na verdade, dá até vergonha de começar um artigo com uma afirmação tão óbvia, afinal dá impressão que eu estou duvidando da inteligência do leitor.
Mas o fato é que a gente tem o costume de esquecer as coisas mais óbvias em favor de considerações complexas, e aí a gente acaba perdendo de vista o que realmente importa e, como se diz, não começa do começo. Só para te situar no assunto, e otimizar meu artigo para os mecanismos de busca, comecemos pela definição.
A fotografia abstrata é uma técnica fotográfica que consiste em remover as características acidentais dos objetos fotografados para mostrar ideias que estão além da realidade material.
Além dessa definição, vamos começar abandonando a ideia contemporânea de que a arte abstrata é composta de coisas aleatórias e sem forma. Na verdade, é justamente o contrário. A arte abstrata só é abstrata justamente por ser predominada pela forma. Só não podemos confundir forma com formato. Então, para começar do começo, preciso ir lá no conceito de abstração.
O que é uma abstração?
A abstração é o processo no qual a gente remove todos os elementos concretos de uma coisa até sobrar somente a ideia fundamental por trás dela. Em outras palavras, fazer uma abstração quer dizer remover todas as características acidentais de uma coisa.
Aqui, precisamos voltar a rever alguns conceitos da filosofia aristotélica pra entender alguma coisa. Vamos para um exemplo prático, então. Um gato, por exemplo.
Todo gato tem um certo conjunto de características que o faz ser um gato. Por exemplo, todo gato normal tem quatro patas, um rabo, é peludo, mia, come determinadas coisas, etc. Guarde a palavra ‘normal’ que eu já volto nela.
Além disso, quando você olha um gato já sabe mais ou menos que esperar. Você não espera ver um gato voando ou escrevendo um blog de fotografia. Mas espera que ele cace pássaros, entre outras coisas.
Veja que tudo isso que eu disse sobre o gato são coisas não sobre um indivíduo específico, mas sobre todos os gatos que já existiram, que existem e que existirão. Você pode fazer uma lista com todas essas características que são comuns a todos os gatos, e isso é uma ideia abstrata porque ela não diz respeito a nenhum ente concreto no mundo em específico.
Só tenho que fazer uma ressalva aqui, que é sobre a palavra ideia. Na verdade a gente acaba usando ideia como uma figura de linguagem, para dar a entender que não tratamos de um ente concreto. Ideia, na maior parte das vezes se refere a um esquema mental. Porém, devemos abandonar o conceito de que existe um mundo das ideias e outro das coisas concretas.
Um gato não existe sem a ideia de gato, portanto a ideia é tão concreta quando o gato em si, e ambos são parte de algo muito maior que chamamos de realidade. A ideia de gato não pertence a nenhuma pessoa em si, e ela existe independentemente de existirem pessoas, senão os gatos dependeriam que as pessoas pensassem em gatos para que pudessem existir.
Porém, para que a ideia de gato se torne um gato, é preciso que haja um indivíduo gato (não estou falando de mim, ok?) que contenha todas essas características. Só que o indivíduo gato tem características que nenhum outro indivíduo gato tem. Por exemplo, um malhado preto e branco possui manchas que nenhum outro teve nem terá. Isso é o que se chama de acidente, e são características que pertencem ao indivíduo mas que não o retiram do conceito geral da espécie.
Por outro lado, todas essas características acidentais fazem parte da ideia central de gato, quer dizer, você não espera gatos encontrar verdes voadores por aí. Porém, um gato preto e branco que exista é um ente concreto que contém em si o conceito abstrato de um gato. Não existe, na realidade, nada que seja puramente concreto ou abstrato porque o concreto depende do abstrato para existir. Aí a gente entraria na conversa sobre potência e ato, o que fugiria do escopo de um blog de fotografia.
Voltando ao significado da palavra normal, ela diz respeito a indivíduos que possuem todas as características acidentais esperadas da sua espécie mais ou menos bem formadas. Por exemplo, um gato sem rabo continua sendo gato, mas não é muito normal. Aqui, tome cuidado para não confundir normal com comum.
Existem coisas que são comuns mas não são normais. Por mais que a maioria dos gatos perdesse o rabo por acidente, isso seria comum, mas nunca normal, porque a característica acidental seria conflitante com a essência.
Então, o que tenho a sugerir é que, antes de fazer fotografia abstrata, comece com o exercício de pegar um objeto qualquer, enumerar suas características acidentais e encontrar qual é a sua essência. Na hora de fotografar, é só fazer esse exercício e ir decompondo as coisas através das técnicas de composição fotográfica.
O processo da fotografia abstrata
Sejamos um pouco mais específicos no que essa conversa toda tem a ver com fotografia abstrata. Se você fez o exercício que propus na seção anterior, então agora a coisa fica fácil.
O que você tem que fazer é ir removendo da composição fotográfica tudo aquilo que é característica acidental do objeto fotografado. Isso inclui tudo aquilo que o faça ser individualizado, como o seu ambiente e, até mesmo, na maioria dos casos, as suas cores.
Veja o exemplo abaixo. O que eu vi foram as simetrias de linhas radiais e axiais no topo de um toco podre. Você consegue ver linhas saindo do centro e indo para as bordas e círculos concêntricos?
Para chegar nesse resultado, eu tive que remover tudo aquilo que faria um tronco ter aparência de um tronco. Então, o primeiro passo foi retirá-lo do seu ambiente, e isso se faz pelo enquadramento adequado. Pode notar que não há nenhuma pista de onde ele estava.
Por fim, e não chegou a ser o caso, pode ser preciso remover suas cores para que se perca ainda mais a informação sobre o material. Nessa foto, especificamente, não foi preciso porque as tonalidades da madeira já eram bem monocromáticas e próximas do cinza.
Em seguida, é preciso remover a sua forma geral, que também fiz pelo enquadramento, nesse caso, tirando a foto bem de topo. Assim ele parece uma estrutura bidimensional, sem profundidade. Toda a noção de profundidade dessa foto ficou nos pequenos sulcos.
Ontem, ao ver a foto, um amigo comentou que ela se parecia com uma cidade. Veja abaixo uma foto aérea de Paris. Isso não é coincidência, pois tanto o tronco quanto Paris possuem a mesma forma geométrica, têm as mesmas características de profundidade por causa dos sulcos e o mesmo tipo de textura. Se você remover todas as características acidentais do tronco e de Paris vai chegar no mesmo resultado. Então, acertei direitinho nessa.
Via de regra, se você fez uma foto abstrata e alguém consegue enxergar outra coisa nela, você acertou na mosca.
Níveis de abstração
Como tudo na vida, a abstração que se faz em uma foto pode ter níveis, indo desde o totalmente abstrato – onde qualquer característica acidental do objeto fotografado foi perdida; até o quase concreto, no qual apenas o seu contexto é removido.
Para entender melhor o que quero dizer, vejamos o exemplo abaixo. Esse é um recorte de um bambuzal que encontrei no Parque Ecológico de Campinas. O que tem de abstrato nessa imagem é o arranjo espacial vertical dos bambus, que dão um senso de orientação na foto.
Foi por esse motivo que eu fiz esse recorte. A ideia era mostrar a orientação do feixe. Poderia ter feito fotografando o ambiente em torno, que ficaria evidente pela orientação dos demais objetos. Só que aí ficaria óbvio demais.
O charme dessa foto é que ela representa a mesma ideia sem um contexto amplo, porque ela explora o fato de que os bambus ainda são identificáveis como bambus em si mesmos e, portanto, esperamos que eles cresçam verticalmente. Isso a torna muito mais interessante para o observador do que uma versão completa com ambiente e tudo.
Além disso, as folhas aparecem de uma maneira mais ou menos ordenada, formado uma linha vertical no topo, que parecem bandeirinhas de festa junina. Elas funcionam como um ornamento que ajuda a dar leveza à cena.
Apesar disso tudo, eu ainda identifico bambus -e isso é parte da composição; mas, por outro lado, eles continuam isolados do mundo, então essa foto não é totalmente abstrata. Eu poderia ir um pouco além e começar a remover as características acidentais dos bambus, como a cor, por exemplo. Vejamos a versão abaixo.
Ainda dá para identificar que se trata de bambus, mas a ausência da cor torna a figura menos confortável. O tom esverdeado da foto original dá aquela informação que destrava a imaginação. Essa versão em preto e branco parece muito mais pesada que a original. Nesse caso, não funcionou. Aí é melhor ficar num estado intermediário mesmo.
Formas geométricas e padrões
Voltando um pouco ao tema do tronco, a geometria é o tipo de abstração mais fácil de conseguir na fotografia abstrata. Basta encontrar coisas que tenham padrões, remover o contexto, as cores, o que for possível da textura e pronto.
Vamos dar uma estuda em dois exemplos. Na foto abaixo, você consegue saber do que se trata o objeto fotografado? Ele era vertical ou horizontal?
Isso aí é uma plataforma horizontal de madeira que tem no Parque Ecológico de Campinas (todas essas fotos foram tiradas numa única seção, que eu dediquei a estudar fotografia abstrata).
A composição foi feita de modo a capturar o maior número possível de simetrias. A mais óbvia é que a imagem é espelhada no eixo vertical. Para notar isso, passe uma linha imaginária de cima a baixo. A imagem é formada por triângulos que se completam por espelhamento de um lado ao outro.
Existe uma simetria no eixo horizontal também, mas essa é menos óbvia por causa da perspectiva. Esse eixo passa horizontalmente pela segunda emenda, que fica a mais ou menos um terço a partir do topo da foto. Foi ali que eu fiz o foco, justamente para esse eixo ficar claro e também porque o centro de massa é a interseção dos eixos de simetria.
Também foi preciso aparecer a terceira emenda para que a foto fizesse sentido, senão essa simetria não teria aparecido e a foto teria ficado desequilibrada pelo fato de aparecer somente dois losangos completos.
Eu poderia desenhar essas linhas na figura para te ajudar, mas quero que faça o exercício identificando-as você mesmo, afinal o mundo real é uma prova sem gabarito.
Uma outra coisa importante sobre o foco é que ele precisou ser afiado em toda a imagem, senão a simetria do eixo horizontal sumiria. Aí o negócio é aumentar a profundidade de campo o quanto for possível.
Mais uma característica dessa foto é que ela não é totalmente simétrica. Veja como as madeiras não são perfeitamente alinhadas. Ainda assim, a simetria aparece ali completamente inabalada e o defeito – que é uma característica acidental do ente concreto; acaba causando uma certa sensação de conforto porque ele tira o peso da perfeição geométrica. O mesmo vale para a textura residual das partes.
Quase-simetrias
O segundo exemplo é esse abaixo. Foi feita no mesmo local, mas usando o pergolado que tinha ali. Esse é um exercício de pura forma geométrica, com linhas precisas e afiadas. Ainda assim, quase dá pra ver o azul do céu. Talvez a ideia tivesse ficado melhor num dia sem nenhuma nuvem.
Particularmente, não gosto dessa foto. Ela é vazia, não faz a vista convergir para nada e causa uma sensação estranha. Também não possui nenhuma simetria, mas a presença de tantas linhas retas faz crer que deveria ter. Essa foto é um drible cognitivo. Às vezes, a arte verdadeira tem dessas coisas. Talvez essa seja uma fotografia abstrata bem sucedida exatamente por causa disso.
E aqui cabe uma crítica ao que a gente entende por fotografia hoje, que são efeitos visuais impactantes e um apelo à beleza em sentido puramente visual. Algumas coisas passam mensagens que não são necessariamente confortáveis ou bonitinhas. Talvez a sensação dessa foto seja justamente porque a geometria é uma obra vazia perto do céu.
Por causa disso, como ela elimina os entes materiais e nos joga para um outro nível ontológico, ou seja, de realidades que estão além das que foram usadas como material na fotografia, vou abandonar o talvez daquele parágrafo acima e cravar que sim, essa foto foi bem sucedida como fotografia abstrata.
Por que quase toda fotografia abstrata é preto e branco?
Acho que, a essa altura, você já sabe responder sozinho a essa questão. Quando inventamos de fazer fotografia abstrata, já temos a ideia de que ela seja preto e branco. Isso é perfeitamente natural porque tirar a cor é o passo mais fácil para remover as características acidentais das coisas.
Porém, como eu mostrei na foto dos bambus, isso nem sempre é verdade. Indo mais além, você pode encontrar relações abstratas justamente entre cores. Aí os acidentes que você tem que remover são outros.
Resumo
Para encurtar toda essa história, a fotografia abstrata consiste em somente duas coisas:
- Saber identificar as características acidentais e essenciais do objeto fotografado,
- Eliminar as características acidentais como cores, texturas e contexto usando as técnicas fotográficas.
Ou seja, você só tem que saber o basicão de filosofia clássica. Todo o mais é somente técnica de fotografia para conseguir atingir o resultado final, como dominar o foco, a profundidade de campo, saber quando usar fundo desfocado, aplicar técnicas de preto e branco e assim por diante.