A fotografia não é uma arte realista e eu posso provar

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Quando se fala de realismo, normalmente, se faz uma redução do mundo aos seus aspectos materiais, apenas. Muita gente acaba acreditando que a fotografia é uma arte eminentemente realista por causa desse reducionismo, que é completamente equivocado. Pra piorar as coisas, esse reducionismo da realidade ao mero material é justamente a base de toda a cosmovisão atual. Então, precisamos voltar um pouco atrás e repensar melhor umas coisas.

A questão toda é que não há meios de ser totalmente fiel à realidade. Veja bem, se fosse tão fácil descrever a realidade, porque estaríamos há milhares de anos fazendo teorias, escrevendo romances, estudando o comportamento dos animais e fazendo toda sorte de arte e ciência? Tudo isso é uma colcha de retalhos, e a gente enxerga o mundo através desses fragmentos. A arte, a literatura, as ciências são todas tentativas, sempre frustradas, de descrever a realidade em todos os seus pormenores. Elas são uma busca incessante e o máximo que conseguem é ir se aproximando e tangenciando a realidade. Isso é uma coisa que é sabida desde Aristóteles, pelo menos, que dizia que a ciência é a busca pelo conhecimento apodítico.

Qualquer obra de arte, por definição, não passa de um fragmento nessa colcha de retalhos toda. É um pedacinho da realidade que foi acomodado numa determinada cosmovisão do artista que a concebeu. Assim, não quer dizer que não exista a possibilidade de qualquer coisa ser realista, mas apenas que ela consegue encapsular apenas um aspecto minúsculo da realidade.

Por outro lado, se eu trabalho com a definição de que realista é tudo aquilo que representa fielmente um aspecto bem determinado da realidade, isso quer dizer que toda obra de arte é realista, porque a arte precisa carregar a verdade, e a verdade é a equivalência com a realidade. Então, o fato de uma obra de arte ser abstrata nas formas não implica, de maneira alguma, que ela não seja realista. Além do mais, isso quer dizer que o termo realista se aplica a tantas coisas que, como categoria, ela não significa absolutamente nada.

O grande problema aqui é o de sempre, confundir realidade com mundo material. Acontece que a realidade metafísica é muito mais vasta que isso, e não precisa de muitos argumentos pra se chegar nessa conclusão. Basta observar como o universo todo é organizado pra entender que há uma forma superior nisso tudo. Veja que esse é um argumento que parte justamente de uma cosmovisão materialista e que, necessariamente, joga para além dela. Se não houvesse ordem metafísica, porque então existiriam as leis da física?

Onde quero chegar com isso é que entende-se algo que seja fiel aos aspectos materiais do mundo como realista, que é bem diferente da conclusão que acabei de chegar. Então, uma fotografia é dita realista porque ela é uma representação fiel da realidade material do momento que ela capturou, pelo simples fato de que o processo em que a luz é refletida pelo objeto, passa pela lente e atinge o sensor seja um fenômeno determinístico. Só que isso, como é costume na cosmovisão atual, é apenas uma parte infinitesimal de toda a realidade e, dependendo de como uma foto seja tirada, ela pode representar uma mentira, apenas usando objetos do mundo real.

O fato é que o que caracteriza uma coisa ser realista ou não é muito maior do que a distribuição de objetos no mundo, e esse é justamente o ponto em questão aqui. E, pra piorar a situação, a própria tecnologia fotográfica não permite que a fidelidade seja muito grande. Existem certas áreas cujas limitações não são nem físicas, mas metafísicas. A própria fidelidade de cores é um problema desses, porque as cores em si não são propriedades do mundo físico. Acontece que elas coincidem com certos comprimentos de onda da luz, mas existem situações em que esse comprimento de onda não corresponde ao que uma pessoa está vendo. É só por isso que existe o balanço de branco.

Do mesmo modo, existem outros problemas, como distorções de lente ou, mesmo, o fato de o sensor picotar a imagem em milhões de pequenos pontinhos, enquanto a realidade em si é muito mais contínua que isso. A única coisa que sobra de realidade numa imagem fotográfica são alguns contornos que contém parte da articulação entre os objetos no momento em que a foto foi tirada, e só. Por exemplo, uma foto de alguém cometendo um crime é uma prova do crime, mas por um princípio metafísico e não por exatidão realista. Ela é prova não porque seja uma representação exata do momento, mas porque ela capturou de forma esquemática e inequívoca um fato enquanto ele acontecia. Tenta ir no Detran contestar uma multa porque os tons da foto da câmera do radar não são fieis. Vai lá e depois me conta se a fidelidade de cores é importante.

Ou seja, o ponto em disputa aqui é acabar com essa falácia de que a fotografia é uma arte realista, em sentido documental, e ela não é. No máximo, o fotógrafo usa os objetos da própria realidade para criar representações de algo que ele queira exprimir. Por exemplo, uma foto de modelo photoshopada não é uma representação fiel da modelo, evidentemente. Ela é a representação fiel de uma outra coisa, que é o conceito de beleza ideal, sem defeitos. E você não vai conseguir isso se fiar só com as coisas do mundo real. Isso torna uma foto dessas falsa? Não.

Se você acha que sim, é porque está interpretando a imagem no seu sentido mais óbvio, que não é o que ela representa. Esse é o ponto que muita gente, inclusive de altíssimo calibre, como Roger Scruton, parece ter dificuldade de entender. Outros filósofos menores, como o Flusser, também sofrem desse problema. Em ambos os casos, eles partem do fato de que a fotografia dá ênfase demais na realidade para, no final, concluírem que ela é falsa justamente por causa disso. Típica confusão de kantianos. É por isso que sou anti-kantiano e anti-cartesiano. Já propus uma outra formulação melhor para uma filosofia da fotografia nesse outro artigo.

Voltando ao assunto, a mesma lógica se aplica a muitos outros ramos, inclusive da fotografia comercial mais básica. Nesses ensaios pre-wedding (que eu acho ultra brega. Me julgue) a ideia não é retratar o casal com realismo. Ao contrário, o que se faz é colocá-los num cenário de sonho e depois dar o tratamento correto na edição pra que tudo fique perfeito. A realidade nisso não é a imagem em si, mas é a imagem da vida feliz que o casal sonha ter após o casamento. Isso, por acaso, não é real? As pessoas não sonham em ser felizes no casamento? Quando vão casar, não acham que estão prestes a entrar nesse mundo que idealizaram? Podem estar erradas, mas essa impressão é real.

Qualquer outra forma de fotografia relacionada à família é mais ou menos desse jeito que funciona. O newborn (no meu tempo a gente chamava de recém-nascido, mas as quase 4 décadas da minha existência já começam a cobrar seu preço) é uma representação do sonho da maternidade e paternidade de alguém, ela representa a felicidade que o nascimento da criança trouxe para a família. O mesmo se aplica a casamentos, também. Aquele é o momento mais perfeito da vida de alguém, e é isso que a fotografia precisa representar.

Então, pra sumarizar as conclusões desse artigo, o termo realismo, hoje em dia, tem uma conotação equivocada e, pra piorar, a fotografia não pode ser classificada como realista nessa definição corriqueira. Por outro lado, ela é realista se levarmos em conta o realismo como a representação fiel de um recorte bem limitado da realidade, que não é necessariamente material. Só que aí isso não significa nada porque é um requisito de toda obra de arte de verdade. Dizer que a fotografia é realista significa o mesmo que dizer que uma pintura cubista é realista. Ou vai dizer que não tem alguma coisa sobre a realidade sendo dita numa obra disforme como um Picasso? Ela só não tem a organização das coisas que a gente costuma ver no mundo.

Fábio Ardito

Pelo mundo atrás de treta.

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