A fotografia como exercício de formação do imaginário

A formação do imaginário é um dos assuntos mais recorrentes na cultura brasileira dos últimos tempos. Muita gente tem feito um bom esforço nesse sentido, consumindo muita arte e literatura. Porém, tenho notado que a fotografia tem ficado de fora do assunto.

Mas, a fotografia pode ser usada como uma excelente ferramenta na formação do imaginário porque a sua prática ajuda a cristalizar as imagens mentais obtidas pelos outros meios.

Nesse artigo, vou explorar a relação entre a fotografia e o imaginário, especialmente como a sua prática é extremamente salutar para que as imagens mentais encontrem um sentido na realidade imediata.

A imaginação e a inteligência

Toda a inteligência humana se baseia em imagens e símbolos que habitam a nossa mente. Tanto é assim que tanto a nossa imaginação quanto a memória são funções intrinsecamente visuais. Quando lemos uma obra literária, como um romance ou uma ficção, o tempo todo ficamos recriando aquelas cenas na nossa cabeça, tentando reconstituir o que o autor colocou no livro através das palavras.

Portanto, é de se esperar que a qualidade dessas reconstruções mentais dependa do material que temos disponível nas nossas cabecinhas. É por isso que Leibniz, um dos maiores filósofos de todos os tempos e um dos homo sapiens mais inteligentes que já pôs os pés nesse mundo, dizia que a pessoa mais inteligente é aquela que conhece mais figurinhas.

As figurinhas são justamente esses símbolos cristalizados que temos na nossa mente. Quando a gente ouve alguém relatando uma situação normal da vida como, por exemplo, um cara escrevendo num papel, temos várias figurinhas que se juntam para remontar a cena. O papel é uma figurinha, a caneta é outra, a mesa em que eles estão é mais uma, o cara que escreve é outra e assim por diante.

A imaginação dá sentido aos fatos da realidade

Do mesmo modo, o ato de assinar um documento também é uma figurinha. Então, as figurinhas não são necessariamente imóveis, mas podem também representar eventos ou atos. Por exemplo, se você ler a frase andar de bicicleta, vai imediatamente imaginar visualmente o alguém andando de bicicleta.

O importante é que aqui já dá pra começar a vislumbrar o que significa ter uma formação do imaginário adequada. O papel da nossa inteligência é juntar todas essas figurinhas e dar um encadeamento lógico que faça as relações entre elas e o desfecho do ato mental ter uma relação verossímil com a realidade. Isso quer dizer que não basta imaginar toda a cena, mas é preciso que ela esteja de acordo com a realidade.

Por exemplo, se você imaginar o cara de ponta-cabeça assinando o papel, algo provavelmente está errado. Acontece que isso é percebido facilmente por qualquer pessoa porque todos temos a experiência de que pessoas costumam ter uma determinada orientação espacial. Os problemas começam a partir do momento em que é preciso reconstituir situações que nunca tivemos uma vivência direta.

A vivência de experiência que nunca tivemos

Como exemplo, vamos pensar num meteoro atingindo a Terra, coisa que espero sinceramente que o leitor não tenha experiência direta nas próximas quatro ou cinco décadas. Posso narrar toda uma história do incidente, que você vai preenchendo com aquelas imagens que possui na cabeça.

Porém, como é muito provável que você não estivesse presente durante a extinção dos dinossauros, toda a reconstituição será feita através de elementos que você pegou de segunda mão em filmes, livros, quadrinhos, etc.

Como todo mundo já assistiu um desses filmes apocalípticos, é bem provável que quando relatarmos uma cena dessas, diversas pessoas façam exatamente a mesma montagem mental. Isso acontece porque a formação do imaginário dessas pessoas com relação a esse assunto veio da mesma fonte, que é a mídia de massas, especificamente Hollywood. Só que se não fossem essas imagens, você raramente seria capaz de imaginar um meteoro caindo na Terra.

Isso ilustra muito bem a função das obras de ficção, que é criar situações possíveis. O roteirista do filme, por sua vez, juntou toda uma coletânea de imagens mentais para criar uma representação da catástrofe toda de tal modo que outras pessoas vissem aquelas cenas como uma possibilidade real.

Assim, a literatura de ficção tem o poder de abrir novas perspectivas e quanto mais ficção você consumir, mais situações possíveis vai poder vislumbrar.

Não é possível desenvolver o imaginário somente com as próprias vivências

É materialmente impossível que alguém tenha uma vida tão rica que consiga formar um imaginário vasto somente com as próprias experiências. Você teria que ser um Padre Pio, um maníaco do parque, um Michael Jackson e milhares de outras coisas conflitantes e incompatíveis na mesma vida, o que é literalmente impossível.

Querendo ou não, isso não depende de você. Todo o seu imaginário será praticamente formado através de coisas que te chegam através de relatos, sejam eles por linguagem escrita, falada, visual ou até por outras sensações, inclusive subjetivas. O ser humano é uma esponja de informação e tudo o que você vê te influencia de alguma maneira.

Portanto, não há escapatória. Como ser humano, você vai absorver informação que vai formar o seu imaginário, queira você ou não. Só que você pode escolher o que e quanto vai entrar no seu imaginário. Existem alguns cursos excelentes por aí, como o do Francisco Escorsim que, provavelmente, você já viu ou vai querer ver.

Um outro exemplo excelente desse processo de formação do imaginário é esse artigo do Paulo Cruz sobre C. S. Lewis, que vale muito a pena. Também tem mais perfis no Instagram e no Facebook que tratam desse assunto, mas falando especificamente do papel que a fotografia pode ter na formação do imaginário ainda não vi, por isso escrevi esse artigo.

Absorver alta cultura é metade da formação do imaginário

No assunto formação do imaginário, as coisas mais importantes são livros, filmes, músicas, pinturas e obras de arte, enfim, a alta cultura. Portanto, quem está lutando pelo domínio da própria imaginação costuma ter atenção máxima à qualidade do material que está consumindo. A escolha desses temas todos é fundamental para que você se torne aquilo que pretende.

Assim como uma casa erguida com lixo provavelmente não vá prestar, um imaginário formado a base de porcaria, também não. Então a alta cultura, que é aquilo que a humanidade produziu de melhor, é o material básico para a construção da nossa psique. É por isso que sempre se faz a indicação das obras clássicas de todas as áreas. Os clássicos são obras que passaram pelo teste do tempo e de diversas culturas. Eles foram considerados o melhor já feito por praticamente todo o mundo.

Só que existe uma pegadinha nisso tudo. Além de absorver toda essa informação, é preciso que ela se cristalize e que se adquira o hábito de usá-la. Esse processo tem que ser feito conscientemente, onde cada figurinha surge quando se faz necessária e com o maior apelo consciente possível.

Um dos objetivos da formação do imaginário é sair da situação em que todas as coisas são apenas impressões. Esse processo é chamado de tomada de consciência, e consiste em sabermos dizer a nós mesmos o que está acontecendo objetivamente.

Como a fotografia pode ser um exercício fundamental para a formação do imaginário?

Então, a fotografia pode ajudar na formação do imaginário como exercício de cristalização dessas figurinhas. Quem fotografa o mundo aprende a olhar para ele e identificar aquelas coisas que tenham um valor especial que as tornem dignas de serem mostradas a outras pessoas. Não somente encontrar essas coisas, mas compô-las num quadro temporalmente fixo que tenha algum sentido profundo.

Aqui vale de tudo, já que a cultura não tem limites. Um prédio, uma flor, um vaso, um detalhe de arquitetura, pessoas numa determinada condição. O que importa é identificar uma daquelas figurinhas que você considera que tenha uma mensagem importante, identificá-las e capturá-las numa fotografia.

Assim, a fotografia tem o poder de treinar o seu olho e a sua imaginação a encontrar essas coisas que valem a pena ao seu redor. Quando falo em fotografar o mundo, não estou falando da ideia boba e romântica dos blogs de viagem. Estou falando do seu entorno, da sua vida cotidiana, das suas coisas. Em suma, a fotografia vai te ajudar a encontrar as figurinhas que você colecionou com tanto afinco na sua realidade.

A sua realidade é sempre um ponto de partida

Numa das primeiras aulas do Curso Online de Filosofia, o Professor Olavo de Carvalho ensina que o método fundamental da filosofia é cavar onde você está. Quer dizer, a sua situação é o ponto de partida para encontrar a pérola perdida no campo que diz o Evangelho. Para encontrar um tesouro é preciso cavar e o melhor lugar para começar é o chão que você pisa.

Nesse sentido, a fotografia é uma das melhores pás que tem. O que é que faz parte da sua vida que mereça ser mostrado para outras pessoas, e que ajude o imaginário delas a se tornar melhor do que é agora?

Pode ser qualquer coisa. Uma simples foto bem feita de uma flor bonita pode ajudar a aliviar o sofrimento de alguém por três segundos. Uma foto de uma obra arquitetônica no centro da cidade pode ajudar a encontrar o que ainda resta de dignidade num centro urbano decaído.

Ou ainda, uma foto pode demonstrar a gravidade de uma situação que poucas pessoas perceberam. Isso tudo diz respeito a terceiros e são uma excelente obra de caridade, mas a fotografia pode ter o poder de te ajudar a expressar a sua coleção de figurinhas e distribuí-las pelo mundo.

A fotografia aumenta a sua atenção à realidade

Ainda existe um outro fator fundamental que é a interação com a realidade, no sentido de que a fotografia explora muito a iluminação natural, por exemplo. Assim, o fotógrafo precisa estar sempre atento ao seu ambiente e tomar consciência da realidade ao seu redor.

Durante o dia, a cor da luz do Sol muda bastante e também o formato e as posições das sombras. Existem fotos que só podem ser feitas quando surgir uma certa combinação de fenômenos. Quando chove no fim da tarde, por exemplo, eu gosto de sair procurar flores pra fotografar na rua. Veja quantas figurinhas eu tive que juntar para fazer essa foto aí embaixo!

Só que a interpretação da realidade depende exatamente do que existe no seu imaginário. Não basta apenas escavar a esmo, é preciso identificar, classificar e dar significado a tudo o que é desencavado. Inclusive, se você procura por uma pérola enterrada no campo, é preciso saber o que é uma pérola.

Portanto, esse processo de fazer as relações entre as figurinhas do imaginário e o mundo é justamente o que significa a inteligência, que é a capacidade de identificar a pérola perdida. Assim, a fotografia pode ser fundamental para fechar o ciclo de desenvolvimento da inteligência que começa, justamente, na formação do imaginário.

A necessidade de expressão surge naturalmente com o tempo

Veja, não adianta entupir-se de literatura se, mais pra frente, isso não for retrabalhado e colocado pra fora de alguma maneira. Esse processo é inerente ao meio cultural e, no meio de um cenário de decadência como o nosso, é imprescindível que haja pessoas retrabalhando essas figurinhas baseadas em alta cultura com o material da realidade presente. Também é necessário que seja repassado adiante para que outras pessoas, que não tenham a capacidade ou os meios, peguem essas figurinhas e usem para si próprias.

Em algum momento, todo mundo que passou um bom tempo trabalhando a formação do imaginário terá a necessidade de expressar as suas impressões. O modo como isso será feito depende da inclinação de cada um. Alguns partirão para o poesia, outros para música, pintura, escultura e tem gente que pode partir para a fotografia.

Uma das maiores vantagens da fotografia como meio de expressão e arte é que ela requer relativamente pouco talento, ao contrário da música e da pintura. Tudo o que um bom fotógrafo do mundo precisa ter é justamente um bom imaginário e aprender a identificar as coisas da sua realidade que valham a pena ser contadas.

Todo o resto é mera técnica que pode ser aprendida, inclusive, nesse blog. Aliás, tá na hora de fazer o meu jabá. Tenho o equivalente a mais de 450 páginas publicadas aqui até o momento, então tudo o que você precisa pra aprender a fotografar já está disponível aqui. Então, tudo o que você tem que fazer pra exercitar o seu imaginário é começar a ler os artigos.

Exemplo: Nossa Senhora da Imaculada Conceição

Vou encerrar esse artigo, que já está ficando longo demais, com uma das minhas fotos favoritas, que é da imagem de Nossa Senhora da Imaculada Conceição da Catedral Metropolitana de Campinas e tentar explicar como a fotografia é uma excelente ferramenta para sintetizar os elementos do seu imaginário e também para alimentar o de outras pessoas.

Existem diversas figurinhas que acabaram compondo essa imagem, e elas são o resultado de muitos anos de prática de formação do imaginário e um pouco de habilidade com fotografia.

A figurinha mais óbvia, evidentemente, é a própria imagem de Nossa Senhora da Imaculada Conceição. Porém, existem muitas e muitas formas de se fotografar um imagem, e a maioria delas é incapaz de passar uma mensagem.

Para conseguir juntar todas as figurinhas possíveis, primeiro e preciso observar bem o tema e a circunstância da foto. Essa imagem tem o tamanho de uma pessoa e, normalmente, fica exposta num nicho atrás do altar principal da Catedral. Eu sempre quis fotografá-la, mas dentro do nicho não encontrava um ângulo que ficasse bom, que contasse a história com toda a sua intensidade.

Juntando as figurinhas

Mas eu fiquei de olho, até um dia que reformaram o nicho e ela foi colocada no chão por um tempo. Então, resolvi que aquela era a hora. Ali, o importante era capturar duas coisas: a noção da Imaculada Conceição e o papel de mediadora entre Deus e os pecadores que são, no fundo a mesma coisa.

Nossa Senhora da Conceição de Campinas. Foto: Fábio Ardito com Pentax K70 e lente Pentax 50mm f1.4 @f5.6

Para representar essas duas coisas, optei por desfocar bastante o fundo, pois a Imaculada nunca foi manchada pelo mundo. Desfocar o fundo significa exatamente isolar o assunto principal do fundo, descolando uma coisa da outra.

Por mais que o fundo fosse uma catedral, ainda assim ela é um elemento mundano. Aqui, precisamos apenas de Nossa Senhora e Deus, e o mundo desfocado serve para enfocar ainda mais o papel da transcendência nessa relação. Nossa Senhora está fisicamente no mundo, mas não conectada a ele.

Por outro lado, a pureza e a beleza da Imaculada também precisam ser corretamente representadas, então toda a escultura precisa ser completamente nítida e com a maior resolução possível.

Além disso, as mãos também têm um papel fundamental, pois é como se elas recolhessem as preces dos pecadores junto ao seu coração enquanto contempla a visão divina, implorando pela misericórdia de todos os seus filhos.

Só aí já dá pra notar que tem várias sínteses imaginativas que são necessárias para a composição do quadro mental, que é justamente onde quero chegar para demonstrar como a fotografia pode ser um excelente exercício para a formação do imaginário.

A seleção dos materiais também é um exercício do imaginário

Agora, é preciso ir além e selecionar os materiais, que vai adicionar mais figurinhas ainda ao processo. Como o ambiente era escuro, descartei usar uma câmera analógica porque era preciso fotografar com um ISO maior, já que não dava pra usar tripé. Além disso, é mais fácil conseguir uma imagem limpa com a digital.

Já para ter o campo de visão suficiente para caber todos os elementos da composição, tive que optar por uma lente com distância focal relativamente curta. Além disso, por causa do fundo desfocado, era preciso uma abertura grande. Nesse caso, usei uma lente Pentax-M 50mm f/1.4. Para maximizar ainda mais a definição, usei a lente na sua abertura ideal que é f/5.6. Assim, o fundo ficou desfocado o suficiente e a imagem ficou extremamente nítida. Na versão em alta resolução dá pra notar até defeitos milimétricos na imagem.

Por fim, era preciso que o enquadramento fosse feito favorecendo uma triangulação entre o pecador (neste caso, o observador), a Virgem Imaculada e Deus. Por isso, eu fui me movendo ao redor da imagem até encontrar um ângulo que formasse uma noção tridimensional dessa relação, com a altura correta para não diminuir excessivamente o papel do pecador, já que a função da Virgem não é esmagá-lo mas, ao contrário, dignificá-lo.

Que tal exercitar o imaginário?

Pra isso basta um celular e começar a observar bem o mundo. Com o tempo você vai notar como encontrar coisas belas ao seu redor se tornará instintivo e natural, eu garanto! Com isso a fotografia vai fazer todo o trabalho de formação do imaginário começar a florescer no mundo!

Fábio Ardito

Pelo mundo atrás de treta.

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