Tenho gastado um bom tempo ultimamente assistindo às aulas do Jordan Peterson no Youtube, especialmente a série bíblica e os mapas de significado. Esse artigo é um resumo grosseiro da filosofia de Jordan Peterson. Um outro preâmbulo importante é que nunca vi ele próprio se auto intitular filósofo, mas como todo o seu pensamento forma um sistema coerente e como seu objetivo é compreender a realidade, então acho que o título correto é esse mesmo. Como dizia o Professor Olavo de Carvalho, filosofia é a unidade da consciência na unidade do conhecimento e vice-versa, e é precisamente o que Peterson faz.

Mais uma nota preliminar é que Jordan Peterson é um acadêmico em sentido estrito. Quando ele diz ‘nós não sabemos tal coisa’, está referindo-se ao conhecimento científico formal do meio acadêmico moderno, como estudos empíricos, relações estatísticas, etc. Ele é sempre muito analítico, e isso é parte fundamental do seu diálogo entre o antigo e o moderno, como veremos.

Caos e ordem

O princípio guiador da obra de Jordan Peterson é que a vida do ser humano está sempre se balançando entre o caos e a ordem. Existe o desconhecido, que causa desconforto e ansiedade, mas também existe o conhecido, que é como o solo firme debaixo de nossos pés. A luta da consciência humana é manter-se sã enquanto põe um pé no conhecido e outro no desconhecido. Porém, o desconhecido desprovido de sentido é o sofrimento, o caos. É quando as coisas não costumam fazer sentido e quando tudo dá errado.

O sofrimento é, justamente, um descompasso entre a consciência e a realidade, e esse descompasso é o caos. O caos aparece nas histórias como a escuridão, monstros, dragões, o fundo do oceano ou o estômago da baleia, etc. É a situação na qual o ser humano não encontra nada que faça sentido, não entende nada e não sabe o que fazer. A ordem, justamente, é o oposto, quando tudo tende a ser compreendido e categorizado. O excesso de ordem também cria um descompasso entre a consciência e a realidade que, paradoxalmente, também gera o caos. Se a condição humana é viver na fronteira entre o caos e a ordem, então uma vida baseada puramente na ordem também não é real, o que leva a um sistema de crenças falso e, portanto, caótico.

Em outras palavras, não há como existir sanidade quando o ser humano se prende a um extremo ou a outro. Se ele se perder completamente no caos, a conseqüência será uma interpretação niilista do mundo, na qual tudo está fadado à morte e à dissolução. Por outro lado, quando se ancora completamente à ordem, tende ao totalitarismo, que é justamente a tendência de querer contabilizar e compreender todas as coisas.

A solução, segundo Jordan Peterson, é quando o ser humano se posiciona exatamente entre o caos e a ordem, com um pé em solo firme e outro no desconhecido, avançando passo por passo e, principalmente, sabendo por quê um passo sucede o outro. Em outras palavras, é preciso encontrar um sentido para que essa tensão entre caos e ordem deixe de ser sofrimento.

Balaio de ideias

Um dos aspectos mais interessantes da obra de Jordan Peterson é que ele consegue extrair os mesmos valores de coisas que são, inclusive, inimigas. Ao mesmo tempo em que tira verdades profundas do Velho Testamento, consegue cruzar essas mesmas coisas com teorias mais modernas, como o darwinismo. Um exemplo bem interessante desse tipo de coisa é a figura da Medusa. A sua cabeça cheia de serpentes representa o caos, e quem olha para elas acaba paralisado. Não por coincidência, segundo ele, existe um mecanismo de defesa entre os primatas que consiste justamente em identificar cobras. Ele cita estudos que demonstram que chimpanzés têm essa capacidade mesmo quando nunca viram serpentes na vida. Ou seja, o mito da Medusa estaria intimamente ligado com um mecanismo primordial descrito pela biologia moderna.

Nesse sentido, as serpentes são um símbolo do risco do desconhecido e, portanto, a cabeça da Medusa é a soma de todos os medos de predadores escondidos que, quando vistos todos ao mesmo tempo, aterrorizam a ponto de paralisar psicologicamente uma pessoa. Imagine alguém que é atingido por uma catástrofe, como uma doença na família, e depois por uma enchente, depois por ladrões e assim por diante. Cada catástrofe dessas é uma serpente da cabeça da Medusa. Não há quem não trave depois de ser atingido por três ou quatro coisas dessas, e a razão é que a nossa reação perante o excesso de tragédias é justamente o causada pelo mesmo circuito neurológico que nos traz a aversão às cobras. Assim, o mito da Medusa seria uma representação poética desse mecanismo de defesa primata, mas contado de forma poetica.

Mais um exemplo muito ilustrativo é o da história de Caim, o primeiro fratricida da narrativa bíblica. Ali, ele demonstra como o ritual sacrificial pode ser entendido em termos psicológicos como uma barganha com o futuro. Ou seja, para obter os benefícios do futuro, é preciso oferecer, agora, algo de precioso como sacrifício. Caim sente inveja de Abel porque os seus sacrifícios não rendem frutos como os do irmão, e ele não consegue entender o motivo. Como resultado, após Deus dizer claramente que é a conduta de Caim a responsável pelo fracasso dos sacrifícios, Caim entra num estado psicológico de ressentimento e ódio contra a própria estrutura da realidade e decide por aniquilar aquele que era o seu mais alto ideal, ou seja, a figura do irmão Abel.

Essa mesma dinâmica, segundo Peterson, estaria presente em assassinos em massa, que costumam atirar em multidões e suicidar-se em seguida. Esses assassinos nada mais seriam que versões de Caim que, por não conseguirem entregar os sacrifícios corretos, não entendem as razões do fracasso e preferem culpar a estrutura da realidade do que a si próprios. Por conseqüência, e como vingança, tentam aniquilar aquilo que seria o seu ideal e em seguida suicidam-se porque a sua própria existência seria injustificada. Mais ainda, esse seria um atentado contra o ser, uma vingança contra o próprio Deus.

Paralelos como esses são encontrados o tempo todo em suas aulas, seja na Série Bíblica (Biblical Series), em Personalidade e suas Transformações (Personality and Its Transformations) ou Mapas de Significado (Maps of Meaning), que estão disponíveis como playlists no seu canal do Youtube. A capacidade de descompactar significados e reinterpretá-los sob diversas óticas e ainda mostrar consistência entre todas elas é a sua marca registrada. E não poderia deixar de citar, também, a análise brilhante do filme Pinóquio, da Disney, de 1940 em Maps of Meaning. Ali ele demonstra todo o desenvolvimento da consciência humana e o seu drama ao caminhar sobre a tênue linha entre o caos e a ordem.

Contemplando o abismo

O abismo é inevitável, dentro dessa visão de Jordan Peterson. Não é possível que o ser humano resolva os seus conflitos e obtenha uma vida rica de significado sem contemplar o abismo em si, justamente porque, como vimos acima, não é possível ficar mergulhado só na ordem ou só no caos. Essa é uma ideia, segundo ele, que nasce em Jung, sua maior influência ao lado de Nietzche. Sem saber o mal que é capaz de fazer, o ser humano não pode fazer o bem. A ideia é que, para que esse lado mal não possa manifestar-se de modo a agregar mais sofrimento ao mundo, ele precisa ser integrado à vida da pessoa de uma maneira positiva. Por exemplo, alguém com tendência para agressão pode se juntar às forças armadas e defender seu país ou, caso essa integração falhe, entrar para o crime organizado.

Além disso, é preciso conhecer o mal que se pode fazer para que ele não seja consumado. Um exemplo é sobre os guardas dos campos de concentração nazistas, que eram pessoas comuns a quem era ofertado, sem nenhum tipo de prejuízo, a possibilidade de não trabalharem com as execuções. Entretanto, mesmo assim, essas pessoas aceitavam esses trabalhos e logo estavam executando mulheres grávidas nuas no frio sem o menor problema de consciência. A questão que Jordan Peterson levanta com isso é a seguinte: você, em quais circunstâncias, faria exatamente a mesma coisa?

A falha em reconhecer esse tipo de limite em si próprio leva a uma espécie de bondade fingida, que culmina num ressentimento profundo e camuflado. Não existe uma pessoa boa e inofensiva ao mesmo tempo, segundo Peterson. Quem vai por esse caminho parece sempre ser a pessoa mais bondosa do mundo, mas nutre sentimentos de puro ódio na sua intimidade. Quando há uma sociedade inteira de pessoas nessa situação, é justamente quando as catástrofes genocidas acontecem, porque o fingimento se torna tão extremo que as pessoas perdem o rumo moral, mergulham no caos e, estando presas nele, precisam impor a ordem através da força.

Mentiras voltam para te pegar

Mais um tema amplamente recorrente é que ele atribui à mentira a expressão deformar a estrutura da realidade. Ou seja, quando alguém mente, está tentando distorcer as coisas a partir de uma narrativa própria. Porém, como isso é impossível, essas mentiras sempre voltam de uma forma ou de outra. Ele diz que, em toda a sua carreira de psicologia clínica, nunca conheceu um caso de alguém que conseguiu escapar de uma mentira que contou em algum determinado ponto. De uma forma ou de outra, a realidade vem cobrar a conta uma hora. Por isso, ele sempre dá esse conselho, nunca minta.

Como exemplo máximo da conseqüência da mentira, ele cita, principalmente, o sistema soviético e a obra de Aleksandr Solzhenitsyn, Arquipélago Gulag, que disserta exatemente sobre as conseqüências da mentira coletiva. Sistemas totalitários são sempre resultado da sistematização de um sistema de crenças fraudulento que, quando ameaçado pelo preço cobrado pela realidade, parte para negação extrema e para a eliminação daqueles que ousam expor a verdade, mesmo que involuntariamente.

Alguém que reclamasse de fome no sistema soviético jamais poderia estar com fome de verdade porque isso seria impossível de acordo com a lógica da União Soviética, afinal o Estado já havia resolvido o problema, pois absolutamente tudo estaria perfeitamente contabilizado e resolvido. Essa mentira, então, era imposta através das prisões arbitrárias, campos de concentração, trabalhos forçados, torturas e execuções. A crença era de que bastava eliminar quem dissesse a ‘mentira’, para que a ‘verdade’ fosse restaurada. Nesses casos, há a completa inversão entre verdade e mentira, mas ninguém engana a realidade por muito tempo. A sistematização da mentira, segundo Jordan Peterson, é a semente do genocídio.

Direita e esquerda

Ainda seguindo a lógica de caos e ordem, ele apresenta dois traços da personalidade humana que são os principais das linhas políticas. De um lado, existem aqueles indivíduos que são ricos no traço abertura (trait openness), enquanto outros são ricos no traço consciência (trait consciousness). Indivíduos ricos em abertura são aqueles que tendem mais para o lado do caos. São as pessoas que têm facilidade em mergulhar no lado sombrio das coisas e retirar de lá coisas novas para agregar à ordem.

Já as pessoas ricas em consciência são aquelas que ficam mais para o lado da ordem, e evitam o passeio pelo caos. Porém, são elas que mantém funcionando as coisas que as pessoas foram buscar no desconhecido e que agregaram à ordem. Um exemplo que ele próprio cita várias vezes é o dos empreendedores, que necessariamente precisam ser pessoas abertas às novas possibilidades. Entretanto, essas pessoas, por sua própria natureza, não são boas em manter seus empreendimentos funcionando porque elas próprias acabam ficando à deriva se não forem limitadas de alguma forma.

É ai que entram os conscienciosos, porque eles organizam e metodizam o trabalho, transformando os empreendimentos em empresas duradouras e funcionais. Contudo, com o tempo, conforme a empresa cresce, ela agrega mais e mais pessoas conscienciosas, o que acaba engessando a estrutura. A empresa, então, perde a capacidade de reagir às mudanças do ambiente com velocidade suficiente e morre.

A partir disso, não deve ser muito difícil entender que o grupo das pessoas abertas tende à esquerda e o das pessoas conscienciosas à direita. Mas é a harmonia entre os dois lados, segundo Jordan Peterson, que faz com que o sistema político como um todo continue funcionando de maneira saudável. Quando um dos lados passa a dominar o espectro possível, a sociedade tende necessariamente ao totalitarismo, seja comunista, fascista, nazista, ou qualquer outro.

Artistas

Ainda nessa linha, artistas são justamente pessoas que buscam o significado no caos e encontram um meio de contar aos demais o que viram. É por isso que a arte possui um valor imenso, mesmo que ninguém entenda o porquê. Ele dá, inclusive, exemplos concretos. Muitas vezes, em apenas uma sala de um museu, existe mais de um bilhão de dólares em obras de arte. E as pessoas viajam do mundo todo até lá para vê-las, e elas nem sabem dizer o porquê de estarem lá, ou a importância daquelas obras.

Isso acontece porque, segundo ele, essas obras contém hiper-realidades, ou seja, conceitos abstratos que são mais reais do que os conceitos concretos. Obras como Shakespeare, por exemplo, são tidas como ficção porque não aconteceram materialmente, mas são hiper-reais porque elas tratam não de uma realidade específica, mas de muitas realidades simultaneamente. Um obra como Hamlet trata de certas coisas que dizem respeito a mim, a você, e a todas as outras pessoas do mundo todo. Por isso, elas contém algo que vai muito além de uma mera história particular. O mesmo raciocínio ele aplica à Bíblia e a mitos de civilizações antigas, como a Mesopotâmia e o Egito.

O fato é que, no universo de Jordan Peterson, os artistas são parte fundamental, porque são justamente eles que agregam os novos conhecimentos. Os artistas são os que trazem o fogo, que originalmente é algo perigoso, e o transformam em luz que põe à vista novos aspectos da realidade. Inclusive, ele mesmo relata que fazia questão de encher a casa toda com obras de arte, justamente porque elas alimentavam as novas ideias.

Minhas críticas à Jordan Peterson

Minha principal crítica a Jordan Peterson, se é que eu tenho cacife para tal coisa, é que ele não parece perceber que teorias como a de Darwin e a biologia moderna são, em si próprias, tão mitológicas quanto todas as outras cosmovisões antigas. Por exemplo, numa das aulas de Maps of Meaning, ele mostra uma animação de uma proteína – se me recordo corretamente, alguma coisa relacionada à reconstrução de RNA; e acredita piamente naquilo como uma realidade absoluta e demonstrada. O problema é que, incrivelmente, ele não percebeu que o caminho entre os difratogramas das proteínas até a construção numérica de modelos que resultaram na animação depende de pulos imaginativos gigantescos entre as diversas etapas. Em outras palavras, aquilo é um universo imaginário amparado em algumas observações pequenas em relação ao todo e, apesar de plausível, não é um fato observado realmente, mas uma construção.

Quando outras histórias entram em ação, como o longo tempo de existência da Terra, de bilhões de anos segundo a ciência moderna, os mesmos fatores entram em jogo, e ele toma essa narrativa como factual. Na minha opinião, longe de verificar a validade ou falsidade dessas teorias, ele deveria tratá-las também como uma mitologia, como a cristalização de mitos numa narrativa amplamente aceita e que é válida como norte para a nossa sociedade. Sociedade essa, aliás, que está se desintegrando a olhos vistos, o que deveria ser levado em conta, evidentemente, visto que a sobrevivência de uma civilização é tão provável quanto a hiper-realidade do seu sistema mitológico. Convenhamos, parece que o nosso sistema de crenças baseadas na ciência não vai muito bem.

Porém, é justamente dessa suposta fraqueza que vem a sua grandeza porque, ao acreditar piamente na ciência e na academia modernas, ele consegue fazer o diálogo com o passado e colocar as coisas em termos corretos, que é o primeiro passo para sanar os problemas de cosmovisão que temos hoje. É por isso que a contribuição de Jordan Peterson para o mundo moderno é inestimável. Só lamento ele não ter conhecido o Professor Olavo de Carvalho em vida, especialmente por causa da teoria do Trauma da Emergência da Razão, que nasce justamente nesse caminhar entre o caos e a ordem.