Como toda máquina, carros são feitos sobre estruturas, evidentemente. Eu sei que dizer um negócio desses pode ser ofensivo à inteligência de muita gente, mas sabe como é, né? De todo modo, o fato é que os chassis automotivos foram evoluindo paralelamente aos motores, e a razão é óbvia. Como ele é a peça que faz a interação entre todas as outras, se ele não acompanhar as demais, a coisa não funciona.
De modo geral, o chassis de um carro tem, pelo menos, essas duas funções: ligar todos os componentes e suportar todas as cargas. O motor e as suspensões estão todas unidas por uma única parte: o chassis. E o motorista também é conectado ao restante da máquina por ele. Porém, ao contrário de motores, câmbios e eixos, o chassis é uma peça estática. Ele não é feito para se mover, justamente o contrário, quanto mais rigido melhor.
Porém, no início da indústria automotiva, esses requisitos ainda eram meio baixos. Quando você está desenvolvendo um conceito de uma coisa inovadora, o objetivo é que ela simplesmente funcione, não que seja o mais eficiente possível logo de cara. Se a gente tivesse que esperar que inventassem a McLaren F1 como o primeiro carro, estaríamos ferrados.
Antes de continuarmos, é bom saber que esse artigo não é uma descrição histórica da evolução dos chassis, mas é um exercício para encontrar o fio do seu desenvolvimento. Isso é uma coisa que costumo fazer com tudo o que estudo, encontrar qual é a evolução das ideias por trás daquela coisa. Pode não ser historicamente realista, mas ajuda a entender os problemas porque as dificuldades são encadeadas logicamente. Basta não confundir com a história da coisa. Dito isso, vamos do começo.
A boa e velha longarina
A própria indústria ainda era bem rústica no início do século XX, por isso, os primeiros chassis também o eram. Na verdade, nesse período, para poder simplesmente ser fabricado em quantidade e a preço acessível, como era o caso do Ford T, era crucial que as coisas fossem as mais simples possíveis. Veja abaixo o chassis de um Ford T com as duas suspensões, o diferencial e o cardã. O chassis mesmo é composto pelas duas longarinas retas na parte de cima, unidas pela peça curva ali no final e outra semelhante, mas invertida na frente. Não tem como ser mais simples que isso. E funciona. Foram fabricados milhões de Ford T, e tem muito rodando até hoje.
Porém, note algumas coisas interessantes nesse tipo de construção. O centro de massa é muito alto porque as longarinas são retas e os eixos ficam debaixo delas. Na época, isso não era muito importante porque as velocidades que os carros andavam eram muito baixas, então qualquer coisa semelhante a uma carroça, servia. E era exatamente o que esse chassis era, literalmente. Dê umas olhadas nas estruturas de carruagens da época e verá uma enorme semelhança.
Entretanto, numa frase que já vi atribuída ao próprio Henry Ford, mas que não sei se é dele – talvez seja de Aristóteles ou Clarice Lispector; é que as corridas de carro surgiram no momento que o segundo carro foi inventado. Invariavelmente, conforme se aumenta a velocidade, logo se descobre que quanto mais baixo o centro de massa, maior a controlabilidade do veículo. Por conta disso, novos tipos de chassis precisavam ser desenvolvidos. Só que, se dá pra reciclar, por que não fazer? Afinal, duas longarinas em paralelo são muito baratas, o que é uma baita vantagem.
Naturalmente, o caminho que foi seguido pela indústria foi o refinamento do modelo de lomgarinas. O chassis abaixo é de um Chevrolet de 1929. Veja como é mais ou menos o mesmo modelo do Ford T, só que as longarinas são curvas na traseira para acomodar a suspensão, enquanto a suspensão dianteira é feita para ser acomodada sob o chassis. Esse é um carro bem mais baixo que o Ford T. Além disso, ele provavelmente é mais leve e mais rígido. Nesse ponto, a indústria já não estava mais apenas fazendo produtos que meramente funcionavam. Aqui já estávamos na época do refinamento.
Longarinas, só que melhores
Nem todas as mudanças e evoluções são abruptas. Muitas vezes elas são feitas pouco a pouco, e esse foi o caso de toda uma linhagem de fabricantes de chassis, inclusive de carros muito bem conceituados. Por exemplo, essa foto abaixo é de uma réplica em escala de um quadro de Ferrari 250 GTO.
Nesse caso, podemos ver claramente como as longarinas são a parte mais baixa da estrutura básica, e não a mais alta como nos casos anteriores. Além disso, agora elas são mais finas e não estão mais sozinhas. Existem dois outros tubos, nas laterais – que conhecemos comumente pelo nome de caixa de ar; e que ajudam a dissipar a carga numa área maior. Nesse chassis também há uma série de elementos unidos às duas longarinas principais e às laterais, mais ou menos como treliças. A traseira é erguida do mesmo modo como a do Chevrolet da sessão anterior.
Essse já é, sem dúvida, um chassis muito mais complexo que os anteriores, e também bastante inovador. Porém, até aqui, todos os carros são, basicamente, uma plataforma plana com uma carroceria em cima. Apesar de ter uma resistência à torção muito maior que os modelos anteriores, ele ainda é bastante pesado. Aí entra um novo tipo.
Chassis tubulares
O fato é que nunca fugiremos muito do padrão longarina. Quase todo carro, de um jeito ou de outro, terá um par de componentes estruturais que vai da frente até a traseira. Só que ninguém disse que eles têm que ser quadrados, retos e estar no centro do carro. E foi desrespeitar esse design o que a Porsche fez. A foto abaixo é de um chassis de 550 Spider, que era um carro bizarramente leve e, mesmo usando um anêmico-até-para-a-época VW a ar, dava conta de carros muito mais potentes.
A Porsche queria bater os outros não na potência, mas na dinâmica. Para isso, criaram um carro muito leve, muito compacto, muito rígido e com uma dinãmica totalmente fora da caixa: o motor foi colocado sobre o eixo traseiro, provavelmente com a intenção expressa de desbalancear o conjunto em acelerações. Já volto nesse ponto.
Olhando o chassis em si, vemos que as longarinas são as próprias caixa de ar. É como aquele design da Ferrari 250, só que levado ao extremo, a ponto de eliminar a necessidade de longarinas centrais. Nesse caso, temos quase metade do chassis a menos, então é uma estrutura ralmente muito leve. Porém, isso tudo só foi possível porque a Porsche era uma empresa que pensava fora da caixa o tempo todo. Eles inverteram o sentido de funcionamento das suspensões. Enquanto na maioria dos carros os braços de suspensão são ortogonais ao eixo de deslocamento do veículo, no Porsche 550 eles são paralelos, os chamados braços arrastados. Essa configuração desfavorece a dinãmica da suspensão, só que abre uma verdadeira caixa de Pandora automotiva.
Isso quer dizer que a suspensão pode ser montada lateralmente ao chassis, e não debaixo dele. Então não é preciso usar a caixa de ar separada das longarinas como fez a Ferrari. Outra inovação é que esse chassis já é muito mais 3D que o da Ferrari 250. Note que ele é reforçado nas laterais para cima, o que adiciona mais um eixo à rigidez estrutural, mais ou menos como um vinco no papel.
Por fim, o modo como a Porsche montou o motor desbalanceado no chassis é o que a fez a marca a vencer mais corridas em todos os tempos. Essa estratégia garante a quantidade máxima de tração no eixo traseiro o tempo todo porque a carga sempre está lá. Em acelerações, quando a tendência do peso é se deslocar para a traseira, a tração é ainda mais acentuada. Como conseqüência, um Porsche sempre tem tração disponível na traseira, o que o faz ser extremamente rápido nas saídas de curva. Como dizia o Carol Smith no livro ‘Tune to Win’, um carro rápido é o que sai rápido das curvas.
Como tudo tem dois lados, o preço a pagar é que um carro com esse tipo de dinâmica tem uma velocidade de entrada e de contorno de curvas mais baixo, além de ter problemas de estabilidade porque a frente sempre é mais leve que a traseira e, portanto, tem menos tração disponível para guiar o conjunto. Mas que funciona, funciona, mesmo com as penalidades de dinãmica impostas pela suspensão, especialmente a traseira.
Chassis tubulares 3D
Outra evolução natural é justamente a de crescer pra cima, adicionando mais um eixo dimensional ao design. Tanto o chassis da Ferrari 250 quanto do Porsche 550 ainda são bastante bidimensionais. Ambos funcionam como uma plataforma em que as coisas são colocadas em cima. Porém, com o tempo, os engenheiros descobriram que estruturas tridimensionais são muito mais fortes que as bidimensionais. Isso, com toda certeza, veio da indústria aeronáutica, mas esse não é um artigo historicamente preciso, então não tô nem aí, o importante é o fio da ideia.
A foto abaixo é de uma réplica do GT40 original. Ele é como o chassis do Porsche, sem longarinas centrais, porém feito apenas com tubos finos numa estrutura tridimensional. Os chassis tubulares são, assim, um dos tipos mais resistentes, especialmente a impactos. É por isso que são, até hoje, os favoritos em carros de corrida. São leves, muito rígidos e resistentes a impactos. Quer mais o quê? Que seja barato e fácil de fabricar?
Além disso, esses chassis podem ser feitos com materiais encontrados em praticamente qualquer loja que venda material para serralheria, afinal são comente tubos. Por outro lado, são difíceis de fabricar porque é preciso encaixar todos os tubos. Infelizmente, fazer os cortes nas pontas no formato e no ângulo certo não é trivial. Quem já tentou montar uma estrutura tubular tridimensional sabe o inferno que é. É preciso ter o ferramental adequado. Além disso, é praticamente impossível fazer um chassis desses industrialmente. Eles são, realmente, coisa de carro arteasanal.
Mais uma desvantagem é que, por ser destacado de outras partes do veículo, ele ocupa espaço. Num carro de pista ou num exótico, isso não é muito problemático, mas num carro de rua que precisa atender a finalidades práticas, é um preço que definitivamente não será pago. É por isso que, por muito tempo, até os anos 80 mais ou menos, os chassis simples de longarina, como daquele Chevrolet 1929, eram os dominantes da indústria.
Entra o Lamborghini Miura
E como a gente faz um chassis 3D, com as vantagens do tubular, mas que dê pra fabricar industrialmente, ser leve, rígido e ainda permitir o acerto aprimorado da dinâmica veícular? A resposta é muito mais simples do que parece: chapas dobradas, furadas e chanfradas. Confesso que nunca dei muita bola para o Miura, até que vi esse vídeo da Hagerty. Ali eu comecei a entender um monte de coisas que fez as peças se encaixarem. Dê uma olhada na foto abaixo, do protótipo de chassis original do Miura.
A ideia, como todas as ideias geniais, é bem simples. Vincos em chapas dão rigidez estrutural, enquanto os furos removem material desnecessário e os chanfros nesses furos dão ainda mais rigidez estrutural. Além disso, chapas dobradas, furadas e chanfradas são fáceis de produzir e, principalmente, de montar. Esse é o processo que sempre foi usado para fabricar carrocerias de aço. Por que não usar para fazer o chassis, também?
Isso tudo tem muito a ver com a indústria automotiva artesanal italiana da época. Ser indústria e artesanal ao mesmo tempo é uma coisa que praticamente só a Itália consegue fazer. Essas fábricas fabricavam veículos inovadores em quantidades limitadas. Eram uma indústria porque produziam bens em quantidade, mas tudo com processos artesanais. E essa é a mágica da coisa toda. Todas as marcas eram pequenas oficinas ou fábricas, como a Ferrari, Lancia, Alfa Romeo e a própria Lamborghini. A marca registrada dessa época era a inovação. E o Miura foi um ponto de inflexão para toda a indústria automotiva.
O mais interessante disso tudo é que o método construtivo é tão simples que é preciso apenas algumas ferramentas para fabricar um chassis completo: uma dobradeira de chapas, uma prensa com dimple die, uma guilhotina e uma máquina de solda ponto ou MIG. Todas essas ferramentas – talvez com exceção da solda MIG; podem ser construidas no quintal e usadas para construir um chassis desses no mesmo quintal. Isso tudo é de uma simplicidade brutal. Ao mesmo tempo, permitiu à Lamborghini fabricar um veículo único, com performance que, na época, era simplesmente superior a tudo o que existia, tanto em aceleração frontal, quanto em velocidade máxima quanto em aceleração lateral. Ou seja, o carro era ótimo em curva, em linha reta, em arrancadas…
E o melhor, é uma tecnologia tão poderosa, que é possível fabricar carros competitivos até para o padrão atual com ela. Um Miura original fazia 0-100 km/h nas casa dos 5,5 s. Isso dá trabalho pra gente grande até hoje, Por isso mesmo, decidi que vou aprender a projetar e fabricar esse tipo de estrutura aqui na minha oficina. Ela é o ponto médio entre o arcaico e o moderno, onde as vantagens do moderno se encontram com os métodos de fabricação arcaicos. Ou seja: é a técnica ideal para se fazer fora da indústria.
Monoblocos
Daí pra frente, o caminho é óbvio. Basta fazer com que a carroceria do carro seja parte intergrante do chassis, fazendo muitas partes terem função dupla: tanto de carroceria quanto estrutural. O Miura, de certo modo, já era um monobloco. E, no fim das contas, foi justamente o que a indústria de carros de passeio fez, afinal foi possível encontrar um bom meio termo entre as arcaicas longarinas (que continuam lá, só que escondidas num sanduíche de chapas) e os tubulares de corrida. Tudo isso com preço acessível, levando um excelente nível de performance para as massas.
Se você for olhar o monobloco de um carro moderno, vai notar que as principais características do Miura estão lá: chapas de aço dobradas (estampadas, para ser preciso, mas aço estampado nada mais é que aço dobrado em várias direções num processo só), chanfros e… furos não furados. Pode notar que a carroceria de um carro de passeio moderno tem vários rebaixos que poderiam ser removidos se o objetivo fosse redução de peso. Só não tem os furos porque é conveniente, já que um carro de passeio, normalmente, precisa transportar cargas.
Na verdade, para ser preciso, existentem muito furos chanfrados numa carroceria moderna, como no VW Golf da foto acima. Note como as estruturas monobloco viraram uma espécie de tubular, só que os tubos não são mais redondos. É por isso que carros como BMW M5 dão trabalho na pista até para Ferraris modernas. E também é muito fácil reparar que isso aí nada mais é do que um Miura, só que muito mais complexo.
Banheiras e estruturas modulares
Por fim, já que esse artigo já ficou imenso, a tendência moderna é, obviamente, o emprego de fibra de carbono. Porém, apesar de ser possível fabricar tubos de fibra de carbono e fazer chassis tubulares com eles, existem meios muito mais inteligentes de cumprir a tarefa. A tendência agora, de fato, é seguir o caminho da banheira com quadros dianteiro e traseiro separados, mas em alumínio. Isso é o que tem sido encontrado em carros como McLaren, Lamborghini e Ferrari.
A foto abaixo é de uma banheira (os gringos chamam de bathtube, cuja tradução é banheira mesmo) de uma McLaren 720s. Nesse caso, o chassis é dividido em três, como disse antes. Essa não é, exatamente, uma tendência atual, porque a Ferrari já usa esse tipo de estratégia desde, pelo menos, a 308, sendo que é possível remover toda a parte traseira da estrutura para manutenções no motor. Esse tipo de arranjo, normalmente, é chamado de berço.
Acho que o caminho é por aqui. O negócio é criar uma banheira de chapas de aço dobrado e furado e anexar os berços dianteiros e traseiros. Um design modular tem muitas vantagens, mas o principal deles, especialmente para um fabricante artesanal, é que toda a configuração do projeto pode ser mudada variando