Tutorial: fotografia realista e documental

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Nem toda forma de fotografia artística busca a beleza ou recortes agradáveis da realidade. Em alguns casos, é justamente a representação da realidade nua e crua que interessa, por mais feia que seja, e esse é o caso da fotografia realista e documental.

É preciso fazer uma pequena distinção nesse ponto. A fotografia documental é uma espécie de fotografia realista, na qual o único intuito é o de retratar as coisas para um futuro. Por exemplo, fotos antigas de uma cidade são fotografia documental e, provavelmente, já o eram quando foram tiradas.

Já a fotografia realista vai um pouco além. Ela possui um pano de fundo, uma história que se queira contar, porém mostrando a realidade material como ela é. Também é preciso enfatizar que a fotografia realista só é realista em sentido material. Ela não é necessariamente capaz de expressar realidades metafísicas.

Aprendendo com Caravaggio

Posso dar um excelente exemplo com pintura. Abaixo está um famoso quadro de Caravaggio, intitulado ‘A vocação de São Mateus’, que retrata a seguinte passagem do Evangelho:

Partindo Jesus dali, viu sentado na coletoria um homem chamado Mateus, e disse-lhe: Segue-me. E ele, levantando-se, o seguiu

Mateus 9:9

Olhando para o quadro, você jamais perceberia que se trata do chamado de um dos Apóstolos de Cristo, afinal a cena parece comum demais. Acontece que a tônica desse tipo de arte é justamente esse, ignorar qualquer realidade metafísica e mostrar as coisas do modo como elas são de acordo com um observador comum.

Pode-se representar a mesma cena com evocações metafísicas mais marcadas, como a inclusão de figuras ou efeitos visuais mais óbvias para que ela se torne menos dependente do contexto. No entanto, esse tipo de obra se apoia em algum material de referência. Neste exemplo, a obra se encontra em uma capela em San Luigi dei Francese, próximo a Roma. Dê uma olhada como fica o quadro em seu habitat natural, ele está na esquerda:

Também conta a história que o cardeal Matteo Contarelli havia dado instruções específicas sobre as obras que deveriam decorar a capela antes de morrer e que tudo foi feito de acordo com esses planos. Portanto, a obra de Caravaggio, concluída em torno de 1600, já tinha um contexto antes de existir.

Além disso, ela também serve como suporte para uma tradição oral, afinal quem estivesse sendo catequizado poderia vir a conhecer o episódio justamente perguntando o que significa a um padre, por exemplo.

Voltando à fotografia realista

Podemos aprender muitas coisas com os quadros de Caravaggio neste sentido. Por exemplo, as cenas são sempre mostradas bem de frente, sem nenhum ângulo artístico que dê qualquer ênfase que seja na estética. A ideia é mostrar a coisa como ela é, como um observador que estivesse olhando o acontecimento o veria. Coisa que, mesmo sendo um fato de ordem sobrenatural extraordinária, ainda pareceria normalmente mundano a quem estivesse presente.

A luz, por outro lado, também é muito marcante em todas as obras de Caravaggio, e ela é uma das características principais do seu estilo. Ela é sempre muito dura e ilumina a cena específica, dando maior ênfase à ela. Na fotografia isso não é muito fácil de conseguir só com iluminação natural, mas é um recurso que pode ser usado caso haja possibilidade.

Por outro lado, a luz dura e as sombras demarcadas são sempre usadas nesse tipo de fotografia. Geralmente, os melhores horários para esse tipo de iluminação, que também é mais fria, é entre as 10 da manhã e as 3 da tarde.

Uma outra coisa importante é que o tema é centralizado no quadro e ocupa praticamente todo o espaço. Então você tem que prestar muita atenção para fazer caber na tela aquilo que você quer representar.

Mais um aspecto a se levar em conta é que toda a imagem possui nitidez, porque tudo o que está nela é assunto da foto. A nitidez é o que define quais elementos são os personagens principais. Então, em fotografia realista e documental, sempre se usa a maior profundidade de campo, o que costuma se traduzir em menor abertura, lá por f16 ou mais.

Alguns exemplos de fotógrafos

Vou dar alguns exemplos de como isso funciona na fotografia, pra você não achar que estou viajando na maionese com pintura clássica. O primeiro exemplo é de Berenice Abbott, que é o retrato de um comércio na Broadway, Nova York.

Nessa foto, você pode notar bem as coisas que enumerei ali em cima. Há o enquadramento reto e frontal. Apesar de estar fotografando uma esquina, o ângulo é escolhido de tal modo a imagem parece plana. Também há bastante profundidade de campo e a luz é bem dura.

Essas duas características se explicam facilmente porque a foto é de 1937 e, nessa época, os filmes possuíam um ISO bem baixo e as lentes tinham pouca abertura. Isso quer dizer que era preciso ou boa iluminação ou bastante tempo de exposição. Como havia pessoas se movimentando, era melhor partir pra primeira opção e fotografar com sol forte mesmo. Boa parte do visual da foto se deve às limitações técnicas do equipamento da época.

No próximo exemplo, vamos dar uma olhada numa fotografia de Stephen Shore, que foi tirada numa esquina entre as avenidas Beverly Boulevard e La Brea, em Los Angeles, Califórnia em 1975.

Esteticamente, essa é uma foto bem parecida com o caso anterior, toda a cena é nítida, enquadramento reto, tema distribuído por todo o quadro e muita luz dura.

Uma outra característica desse tipo de foto é que ela se preocupa em representar as coisas como elas são, então se tem carro passando, gente atravessando, poste atrapalhando enquadramento, tudo isso faz parte da composição.

Fotografia realista na vida real

O bom desse tipo de fotografia é que ela não requer muitos recursos para fazer. Basta uma câmera com boa nitidez, bastante campo de visão e pronto. Dá pra fazer tranquilamente com celular, especialmente porque não é o tipo de foto que se faz para impressão em tamanho grande.

Pra quem vai pro campo com uma DSLR, basta escolher alguns parâmetros simples. Eu uso modo de prioridade de abertura e seleciono f/16. Como as fotos costumam ser tiradas durante o horário mais iluminado do dia, também não é necessário usar ISO alto e, por isso, jogo no 100.

Pra quem vai com analógica, o ideal é partir pra um filme com grão bem fino, como o Kodak T-max com ISO 100 para preto e branco ou ProImage 100 para colorido. Quem quiser se arriscar com uma compacta, pode usar o modo P sem problema. Só não recomendo tentar fazer com uma saboneteira porque a ótica costuma não ser nítida o suficiente para conseguir bons resultados.

Tirando isso, não tem muito segredo. Escolha o tema da sua fotografia e siga os passos que enumerei nessas fotos aí em cima, especialmente no que diz respeito ao enquadramento.

Uma coisa que é preciso tomar cuidado é que, apesar dessas fotos serem de temas cotidianos, é muito fácil que elas fiquem parecendo fotos amadoras e sem graça. Por isso, é crucial caprichar, acertar o alinhamento bem acertadinho, tomar muito cuidado com o horizonte – que sempre tem que estar perfeito, e caprichar no foco.

Com relação às cores, sempre tente ser fiel à cena o máximo que você puder, afinal você está mostrando mais o mundo do que a sua visão sobre ele. Então desligue quaisquer recursos como HDR e perfis de cor. Essa foto abaixo fiz em Campinas no dia 18 de fevereiro de 2021 com a minha Pentax K70 nessas configurações.

O contexto da fotografia realista e documental

Voltando um pouco ao começo do artigo, como a fotografia documental e realista precisa de suporte, muitas vezes ela isolada não fará muito sentido a um observador. Por exemplo, essa foto de Campinas aí em cima faz parte de uma crônica sobre a arquitetura do centro que estou escrevendo. Portanto, ela é parte de um contexto maior.

Se essa foto for postada isoladamente numa rede social, por exemplo, ela necessariamente vai precisar de uma legenda e dificilmente vai ter algum impacto visual em alguém, afinal é si um ambiente que já está todo mundo muito acostumado.

Isso acontece do mesmo modo que a pintura de Caravaggio. Ela pode ser o iniciador de uma conversa ou uma exposição mas, ela em si própria, não carrega nenhuma mensagem específica. Por outro lado, uma foto dessas adquire sentido próprio com o tempo. Por exemplo qualquer foto dos anos 2000 pra trás já cria um sentimento do tipo ‘olha só como era’.

Ainda assim, existem coisas que podem ser documentas com realismo pela fotografia e ainda passar a sua mensagem sem precisar de apoio externo. Esse é o caso das fotografias de denúncia, seja de qual causa for. Inclusive, ali pelos anos 90 e 2000, ninguém podia se dizer fotógrafo se não fosse pra África tirar umas fotos de criancinhas famintas.

Aquilo acabou virando uma moda brutal. Muita gente ia pra lá só pra fazer isso e conseguir seus 30 segundos de fama em grupos politicamente engajados, o que não deixa de ser uma vergonhosa exploração da desgraça alheia.

Uma outra categoria é a guerra ou desastres naturais. Porém, note que, em todos esses casos, são as situações excepcionais que fazem as fotos criarem vida própria justamente por se tratarem de um retrato realista de uma situação que a maioria das pessoas não vai presenciar.

Um último tópico que eu gostaria de tratar é que, muitas vezes, é preciso que o movimento seja documentado nas fotos. No caso de uma cidade, há um grande fluxo de carros e pessoas. Nesses casos, pode ser interessante que essas coisas apareçam borradas por movimento ou por desfoque devido à proximidade com a câmera.

Fotojornalismo

Não precisa nem dizer que esse é o tipo de técnica fotográfica do jornalismo por excelência. É bastante óbvio que isso ocorra justamente porque o jornalismo precisa ser fiel à realidade material dos eventos, umas vez que (ao menos em tese, porque hoje em dia tá osso) o objetivo do jornalismo seja retratar os fatos com a maior fidedignidade possível.

Uma vez li em algum lugar, e realmente não me recordo de onde, que perguntaram para um fotojornalista famoso, lá nos anos 60, qual a técnica que ele usava. A resposta foi ‘f16 e esteja lá’. Essa é uma resposta bem interessante por dois motivos. Um é que se usa f16 nesses casos por causa da profundidade de campo, assim além de ficar tudo mais nítido, não é preciso gastar muito tempo com foco. Em fotojornalismo não é sempre que dá pro fotógrafo fazer um foco fino, especialmente com as câmeras manuais dos anos 60.

A segunda parte do conselho é que é a mais importante. Se você não estiver onde a foto precisa ser tirada, não vai ter foto. E essa é uma lição que vale para toda a fotografia. Antes mesmo de pensar na técnica, certifique-se de estar lá e isso independe de se tratar de fotografia abstrata, realista ou documental.

Fábio Ardito

Pelo mundo atrás de treta.

Este post tem 2 comentários

    1. Até que sim, mas não ficou bom o suficiente pra publicar. Acho que o melhor, pra quem não tem o scanner, é fotografar com a DSLR mesmo.

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