Quando se fala em filosofia da fotografia, as primeiras coisas que encontramos costumam ser a definição do Sebastião Salgado, de que devemos fotografar com a nossa cultura, ou o trabalho do filósofo Vilém Flusser. A visão do Sebastião Salgado é mais uma constatação, até óbvia, do que uma filosofia propriamente dita.
Já o trabalho de Vilém Flusser, especificamente a obra “Filosofia da Caixa Preta”, é um apanhado de noções no mínimo muito estranhas, de confrontos entre textos e imagens, coisas que, por si mesma, já mereceria um artigo só sobre ela. Por exemplo, ele define: “Aparelho fotográfico: brinquedo que traduz pensamento conceitual em fotografias.” Quem traduz o pensamento conceitual em fotografias é o fotógrafo, ou é a câmera que sai procurando as cenas pra fotografar? É esse tipo de confusão, tão presente na filosofia nacional, que torna a coisa toda uma imensa chatice e perda de tempo.
Então vamos fazer um pouco diferente, e cavar na realidade.
Estabelecendo a base da filosofia da fotografia na realidade
A coisa mais imediata, e que chega até mesmo a ser ofensivamente óbvia, é que a fotografia depende da presença de objetos e de luz, e que ela captura as ondas (ou partículas, dependendo da circunstância) luminosas que interagiram previamente com os objetos da cena através de um instrumento.
Portanto, é a presença o elemento fundamental da fotografia. A luz, em si mesma, é mais parte do meio material pelo qual o fotógrafo executa a sua obra do que parte da imagem em si. A luz é a tinta do fotógrafo, e não é na tinta que está a essência de um quadro, com a distinção de que o fotógrafo, ao contrário da maioria dos pintores, não tem todas as tintas disponíveis ao seu bel prazer.
Mas, muito além da presença material dos objetos da cena, existe também algumas presenças que estão num plano ontológico verticalmente superior, que são as relações entre esses objetos, seus significados simbólicos e, principalmente, suas relações tanto com o fotógrafo quanto com o observador, que é uma ligação quase supra-temporal.
A relação entre fotografia e pintura
A distinção principal entre a fotografia e a pintura é que a fotografia cria um elo causal objetivo entre a presença do objeto, a do fotógrafo e a do observador. Enquanto os objetos retratados numa pintura, por mais que seja hiper-realista, são uma representação da imaginação do artista -e, portanto, uma representação subjetiva, na fotografia elas são as impressões diretas dos objetos.
Quando alguém fotografa uma cena qualquer e depois mostra a outra pessoa, aquele recorte específico do momento presente do fotógrafo foi congelado no tempo e fará parte de um momento futuro do observador, no qual ambos podem compartilhar a mesma visão de uma circunstância que já não existe mais, mas que o registro da sua presença ainda perdurará pelo tempo em que aquela fotografia ainda existir. É daí que vem o sentimento nostálgico das fotos de família. É como se você estivesse vendo com os olhos do fotógrafo naquele exato momento da vida do seu ente querido.
Retornando um pouco à pintura, pelo fato de um pintor levar muitos dias para completar uma tela, a própria cena retratada não é mais aquela do momento presente da execução, mas uma anterior que é mantida e atualizada pela imaginação do artista. Ou seja, é a imaginação que mantém a cena viva enquanto a obra é completada. Sempre tenho a impressão que os quadros de retratos causam muito menos comoção do que as fotos, e isso certamente tem a ver com o que expus no parágrafo anterior.
Além disso, na pintura as cenas podem ser completamente imaginárias, não sendo realmente necessária a existência material dos objetos que a compõem, como é o caso das pinturas sacras ou, ao menos, a maioria esmagadora delas. Isso é uma pista fundamental na investigação da filosofia da fotografia.
A fotografia e a presença
Entretanto, a fotografia sempre necessitará da presença material dos objetos e, por conta disso, ela também consegue ser uma representação de um momento presente muito bem delimitado no espaço e no tempo. Isso ocorreu principalmente após o desenvolvimento de filmes de alta sensibilidade que permitiram a fotografia com tempos de exposição mínimos, hoje na casa dos micro-segundos em câmeras digitais profissionais.
Como a fotografia depende da presença dos objetos, ela também sofre menos influência da imaginação do artista. Apesar de o fotógrafo poder dirigir uma cena, arranjar objetos, mudar o enquadramento e assim por diante, a sua ação é limitada pelas dificuldades materiais inerentes à realidade. Um fotógrafo não tem como fotografar um pôr-do-sol vindo do leste, mas um pintor tem como pintar uma cena dessas, tendo apenas a sua imaginação e sua habilidade como limites.
Nesse sentido, técnicas de colagem digital, muito populares hoje em dia, apesar de serem chamadas de fotografia, se aproximam muito mais da pintura; mas usam imagens fotográficas como material básico, e não tintas e desenhos. Porém, não é o intuito deste artigo entrar nesta discussão, então voltemos ao ponto inicial.
A filosofia clássica e a fotografia
Se a fotografia é uma arte que depende da presença, também é verdade que ela só pode captar certos recortes dessa presença. Por exemplo, se eu fotografo uma jaca, fica registrada na foto a aparência externa da jaca, e somente daquele lado que é visível. A sua parte interna não é visível neste momento, bem como a maior parte do exterior e isso não é uma limitação do fotógrafo ou da câmera, mas da realidade em si mesma. Isso remonta a princípios básicos da filosofia clássica, e é a estrutura da realidade, não somente uma parte da fotografia.
Portanto, pode-se dizer que a função do fotógrafo seja escolher quais são as circunstâncias, dentro dessas limitações inerentes à realidade, que devem ser ordenadas de modo a representar aquelas relações que estão no plano ontológico superior que ele queira mostrar. Isso é o que eu chamo de mensagem da fotografia.
Por exemplo, se eu quero fazer uma fotografia abstrata para registrar certas formas geométricas de um objeto qualquer que me parecem belas, tenho que encontrar uma posição e um ângulo para a câmera que maximize a minha mensagem, ajustar todos os parâmetros, tirar a foto e depois fazer o pós-processamento. Todas essas coisas não são feitas por causa do objeto em si, mas por causa de uma ideia abstrata que pode ser representada através dele.
Muitas vezes, essa ideia abstrata pode vir através da foto de uma praia, de uma paisagem, de uma pessoa, de uma obra de arte ou de alguma coisa insignificante na sarjeta. O fato é que a mensagem de uma foto artística raramente se refere ao próprio objeto da cena. Por exemplo, as pessoas tiram fotos de praias por causa do conceito abstrato de beleza natural, e não por causa da praia em sentido material; como um aglomerado de grãos de areia que encontram a água salgada de um oceano que pertence a um planeta formado por rochas, etc.
Isso vai de encontro a outras formas de fotografia, especialmente as do dia-a-dia. Por exemplo, preciso mandar um documento por e-mail pra alguém. Então eu pego o celular, tiro uma foto e mando. Nesse caso a intenção é simplesmente replicar materialmente o documento e não há nenhuma ideia ontologicamente superior nisso. Essa é a diferença entre uma técnica e uma arte e, nesse livro, vamos focar na arte.
Portanto, um bom fotógrafo tem que ter a percepção aguçada para perceber como essas ideias abstratas de condensam num ordenamento de objetos materiais que pertencem à realidade. Para isso, é necessário entender como funciona o próprio processo cognitivo e também como se consegue ampliar o imaginário para aprender a representar essas realidades mais abstratas.
O fotógrafo e a fotografia
Para explicar melhor o que quero dizer, vou usar uma analogia. Imagine que você seja um aquário, com o elemento mais pesado, a terra, no fundo; a água no meio e o ar no topo e que você enxergue de cima para baixo. A terra no fundo representa a realidade material, a água representa as suas emoções e o ar o seu intelecto, a parte do seu ser que enxerga a realidade.
Para que você possa ver a realidade claramente, quer dizer, a terra no fundo do aquário, é preciso que a água esteja calma e límpida. Se a água estiver agitada, ela se mistura com a terra da superfície, turva-se e impede a visão, virando uma confusão entre água e terra. O que isso significa é que quem é levado pelas emoções não consegue enxergar a realidade direito, vivendo num constante estado de confusão mental.
Só que, por outro lado, a água que está ali tem uma função. Então, as suas emoções existem por uma boa razão. É através delas que você pode enxergar a realidade. Por exemplo, se uma coisa te causa uma sensação de felicidade, e você souber observar suas emoções sem se deixar levar por elas, vai entender o que e porque está te causando aquela felicidade, porque você estará vendo claramente o fundo do aquário. Ao contrário, aquele que se agita quando fica feliz costuma estragar tudo.
O mesmo vale para todas as outras emoções. O medo é um bom exemplo. A sensação de medo denuncia que algo ruim pode acontecer. Se você não se deixar agitar pela emoção, pode identificar a causa, averiguar se ela e real e, se for, tomar uma atitude para evitar aquele perigo. Já o pânico é simplesmente o medo que saiu de controle. Quem entra em pânico turva a sua percepção e vira uma vítima fácil de um perigo real.
Note que nada disso significa que você deva se tornar uma pessoa insensível, muito pelo contrário. Quanto mais controle, mais sensibilidade e muito mais poder de ação. Se você se sente amado e não se agita por isso, pode amar mais e amar de volta, coisa que os afobados não conseguem. Antes que isso aqui vire um artigo de autoajuda, vamos voltar à filosofia da fotografia.
Portanto, para a fotografia, assim como para qualquer outra atividade humana, é imprescindível o controle das emoções para que se consiga expressar corretamente, e isso não significa suprimir nenhuma delas. Significa apenas usá-las como um diagnóstico da situação.
A contemplação
Hoje em dia, as pessoas acham que as emoções existem para serem sentidas, então elas confundem emoção com sentimento. Por exemplo, se eu vejo uma flor bonita tenho que sentir a emoção da beleza da flor, e isso não é verdade. Se eu vejo uma flor bonita, serei comovido pela beleza da flor e, percebendo isso, posso simplesmente entender que a flor é bonita e passar para o passo seguinte, que é a contemplação.
A contemplação é uma atividade puramente intelectual e consciente, que é completamente diferente de racional. A contemplação consiste em estar aberto à presença do objeto contemplado, quer dizer, estar pronto a aceitar tudo aquilo que ele quer dizer. No caso de uma flor bonita, ela tem cores, formas, uma relação com o resto do canteiro. Ela tem uma existência finita no tempo, nasceu num dia e morrerá em outro. Tem uma circunstância, uma hora no dia que ela pega o sol alaranjado do fim da tarde, e tem um horário que o sol pega de topo e realça suas formas com sombras duras. Contemplar é dizer a si mesmo, conscientemente, todas essas coisas, é ganhar conhecimento das realidades simples, plantar os pés no chão e cavar até a realidade estar totalmente exposta.
Assim, a fotografia é um exercício de perceber todas essas coisas, de entender que há uma história e uma circunstância por trás de cada uma das coisas presentes na realidade, que elas já estavam ali quando passei e que continuarão estando, ao menos por um tempo, depois que eu passar. E isso é o que define toda a filosofia em torno da fotografia.
O meu papel, como fotógrafo do mundo, é registrar um desses momentos de contemplação e congelá-lo no tempo. É por isso que a fotografia é sempre um recorte, porque é um pedacinho da realidade que parece valer mais a pena ser retratado do que outros.
Quando digo recorte, quero dizer em sentido amplo, não somente o que cabe na janelinha da câmera. Por exemplo, pense um pouco em cores. Se eu vejo uma flor colorida, não é lícito remover as cores que não sejam da flor, justamente para mostrar essa parte da realidade?
A conclusão deste primeiro ensaio sobre a filosofia da fotografia é que o fotógrafo, assim como o pintor, precisa tomar o controle das suas emoções para poder afinar o seu sentido cognitivo. Quanto mais auto-controle um fotógrafo tiver, melhor ele vai fotografar.
olá, Fábio!
interessante ler seu texto, sinto falta dessas discussões.
Creio que quando Flusser fala “Aparelho fotográfico: brinquedo que traduz pensamento conceitual em fotografias”, ele se refere à capacidade do aparelho fotográfico em gerar imagens a partir de textos científicos – ou seja, a câmera é feita com informações que nos escapam, é um produto no qual tudo ali já está pronto para o uso, pois é programada para exercer funções limitadas. “Brincar” com o aparelho é o que ele propõe, ser fotógrafo é ultrapassar esses limites de algum modo (eu estenderia isso até mesmo para o uso da fotografia nas redes sociais, os modos de circulação etc.)
“Como a fotografia depende da presença dos objetos, ela também sofre menos influência da imaginação do artista. Apesar de o fotógrafo poder dirigir uma cena, arranjar objetos, mudar o enquadramento e assim por diante, a sua ação é limitada pelas dificuldades materiais inerentes à realidade. Um fotógrafo não tem como fotografar um pôr-do-sol vindo do leste, mas um pintor tem como pintar uma cena dessas, tendo apenas a sua imaginação e sua habilidade como limites.”
Você fala como se a fotografia ainda estivesse restrita à revelação do filme fotográfico, como se o analógico dominasse. Creio que após o digital toda essa ideia do referente fotográfico e a mimese foi por água abaixo (Dubois concorda com isso hoje em dia), ouso dizer que até muito antes isso já era tensionado (em processos como os da fotopintura, por exemplo).
Você conhece o trabalho do Joan Fontcuberta? ou o uso da fotografia nas deepfakes? acho que ambos os exemplos mostram como a fotografia pode ser bastante imaginativa, manipulada e por si só, uma construção, ou seja, pode possuir um caráter ficcional, sobretudo após o digital. As fake news tão aí para provar isso.
Oi Graziela, obrigado pela sua resposta!
Sobre essa questão de textos científicos, tudo não passa de confusão entre figuras de linguagem, mas especificamente das metonímias, que é tomar a parte pelo todo. Textos científicos não são, de forma alguma, fonte suficiente de informação para se fazer qualquer coisa que seja. Eles são apenas noções esquemáticas de conhecimentos parciais que temos da natureza. Por princípio, todo conhecimento é parcial, já que é impossível apreender a realidade como um todo. Basta dar uma olhada em qualquer teoria científica para saber que existem situações que ela não cobre. Isso ocorre, inclusive, pela própria natureza do método científico. A gente recorta uma questão e então procura uma explicação para aquele recorte. Não tem como explicar a reprodução dos Chimpanzés e os níveis do átomo de Hidrogênio com uma teoria só. Ainda além, nem mesmo as teorias mais simples podem ser totalmente exploradas por um único texto, tanto que toda teoria possui volumes e volumes escritos a seu respeito. No caso de uma câmera, para ser mais concreto, qual é o texto científico que une os princípios moleculares do plástico, com a física das lentes, com a química do filme, com a psicologia do operador e com a filosofia da arte? O problema dessa visão do Flusser é que é simplória demais e, além disso, ainda demonstra que o próprio Flusser talvez nunca tenha lidado ele próprio com a reprodução de um experimento científico. Você pode ler toda a literatura científica especializada de uma área, e ela jamais será suficiente para fazer nem mesmo as tarefas mais simples. Sempre falta algo sobre um parafuso, sobre gestão de recursos humanos, sobre tipos de materiais e uma infinidade de assuntos que não tem como cobrir com textos. Para você ter uma ideia, a NASA não consegue mais montar os motores das missões Apollo porque as pessoas que tinham as informações subjetivas a respeito do projeto já morreram e não conseguiram documentar certas coisas. Achar que tudo pode ser documentado nos detalhes totais e depois reconstruído é apenas ilusão que morre na primeira semana de trabalho em um laboratório. Ademais, essa visão acaba sendo levada até o ponto em que o próprio Flusser começa a confundir papel com matéria-prima de câmera, quase literalmente.
Sobre a segunda parte, todas essas técnicas, como os deepfakes, podem ser considerados fotografia? Ou já são outra coisa? Elas são a captura de objetos tridimensionais num espaço bidimensional ou já são algo a mais? Por exemplo, se eu pego um pedaço de barro em forma de vaso e começo a mudar a sua forma até parecer uma cadeira, ele ainda é um vaso? Montagem e pintura digital são artes diferentes da fotografia e que podem usar a fotografia apenas como ingrediente, mais ou menos do mesmo modo que se eu pegar recortes de fotos e colar num mural não dá pra chamar mais de fotografia.