O Velho e o Mar foi a obra que rendeu o prêmio Nobel de literatura a Ernest Hemmingway em 1954. Daí se vê, especialmente porque na década de 50 o prêmio ainda conservava alguma seriedade, a importância do livro. Porém, prêmios não significam quase nada, o que conta é o teor de hiper-realidade que a história tem. Como diz o Jordan Peterson, e você pode ler um resumo sobre ele clicando aqui, os mitos e as histórias que se tornam clássicas são aquelas que contém não uma realidade específica, mas geral de alguma coisa. Por exemplo, o Senhor dos Anéis não é sobre hobbits, cavaleiros e magos, mas sobre as jornadas que as pessoas enfrentam em busca da concretização do seu ideal.
Nesse sentido, as grandes obras de ficção da literatura universal falam sobre todas as realidades concretas ao mesmo tempo. A história pessoal de cada um vai se cruzando com as histórias de cada personagem. Num determinado momento de sua vida, você é o Gollum, consumido por uma imensa tentação. Em outro, é o Frodo, que consegue resistir a essa mesma tentação. Então você se identifica com a tensão entre os dois personagens, e é claro que eu poderia escrever um artigo inteiro sobre isso. Porém, o ponto da questão aqui não é esse. É apenas entender que as grandes obras têm algo de muito profundo a dizer sobre o leitor. E uma maneira de identificar uma grande obra é justamente reparar se a sua vida se encaixa, de algum modo, naquela história. O Velho e o Mar é, certamente uma dessas obras.
Daqui por diante, estou considerando que você já leu o livro e, se não o fez, vá lá e faça. É curtinho e dá pra matar em uma sentada. Depois volta aqui.
O velho
A história é sobre um cara, já velho, que já foi provado pela vida e que tinha passado no teste. Era um pescador conhecido e respeitado, e que já tinha até feito algumas coisas interessantes, como viajar pela África – onde viu leões, com os quais sempre sonhava desde então. Aliás, esse aspecto do sonho constante dos leões brincando na praia daria mais um artigo, só pelo conteúdo simbólico.
Entretanto, esse pescador cai num período de seca, em que nada dá certo e ele fica 84 dias sem pegar nenhum peixe. Ele passa esses 84 dias tentando todos os dias, sem perder as esperanças. Em parte, isso é de se esperar de alguém já maduro e que já conhece o seu potencial. Quem já passou pelas provações da vida consegue manter a calma nessas horas, especialmente nas em que nada acontece. Isso, inclusive, é uma das piores situações que pode acontecer com alguém, que é nada acontecer, nem de bom e nem de ruim. A pessoa fica ali presa, imobilizada, vê seus recursos acabando e ela vai ficando cada vez mais amarrada. É preciso uma dose de sangue frio gigantesco para resistir a uma situação dessas sem cair em completo desespero.
Essa é, também, uma característica constante em Santiago, o velho pescador. No decorrer da luta com o peixe, ele está sempre calmo e sempre avalia a sua situação friamente. As várias cenas em que conversa com as mãos machucadas são provas disso. Ele sabe que a dor é passageira e que o sacrifício é necessário. Por isso, ele sempre encara o sofrimento de uma maneira instrumental, que é outra característica das pessoas maduras. Todo mundo que já foi provado pela vida sabe que não há vitória sem uma luta dolorosa. A glória e a dor são verdadeiras irmãs.
Existe, também, um aspecto importante na sua relação com o menino. Manolin sabe que santiago é um grande pescador e queria ser seu ajudante. Santiago, entretanto, parece achar as opiniões do menino um exagero e acha que pode fazer as coisas sozinho. Isso vai ter um papel decisivo no desfecho da história, como veremos.
Caos
Retornando à linha principal da narrativa, em termos simbólicos, a história é sobre um homem já maduro que precisa adentrar no desconhecido e confrontar o seu maior desafio. O mar, quase sempre, representa o caos, porque ele é inóspito e esconde monstros sob a sua superfície. Em o Velho e o Mar, a relação entre o pescador e o mar é, na verdade, amigável. O velho Santiago não só sente-se à vontade, mas conhece a fundo o oceano. Ele sabe as direções das correntes, dos ventos, o comportamento dos peixes e das aves. No seu pequeno barquinho, ele navega confiante entre os hábitos conhecidos do mar e os perigos desconhecidos da sua profundeza. Hemingway é bem claro nesse aspecto, especialmente quando diz que Santiago chama o oceano de la mar, no feminino.
Essa é mais uma característica de uma pessoa madura. Santiago sabe que o desconhecido é perigoso mas necessário, e não somente mantém a calma diante do caos, mas usa tudo o que sabe para fisgar o próprio destino ali naquela situação. Figar o destino, aliás, é precisamente o que Santiago vai fazer no meio do caos. E aqui entra mais uma questão que o Jordan Peterson sempre coloca: quando você está numa situação ruim, a única coisa que pode fazer é procurar pela siolução no meio do caos. Se Santiago ficasse na praia, ou seja, na ordem, onde tudo é conhecido e seguro, jamais teria encontrado o maior peixe que já viu na vida.
Note também que essa era a única saída para os 84 dias sem pegar nenhum peixe. O que ele poderia fazer se continuasse na praia? Então ele reúne as poucas coisas que tem e vai tentar tirar algo que preste das profundezas do caos. Aí, portanto, reside uma outra alegoria importante, que é o fato de que Santiago se fia nos recursos que conhece muito bem antes de entrar na aventura. Ele sabe exatamente quantas linhas possui, a que profundidade jogar, como manejar a faca, como limpar os peixes com uma mão só, etc. Ou seja, a sua incursão no caos é quase uma viagem planejada, afinal ele já era habituado a isso. O que muda no octogésimo quinto dia é que ele deixa o barco se afastar mais da costa do que o de costume quando começa a perseguir o cardume que os pássaros sobrevoavam.
Aí reside mais uma lição. O homem experiente não mergulha desordenadamente no caos. Ele se deixa levar por sinais concretos que o colocam na direção desejada. O caos o arrasta de maneira mais ou menos ordenada e esperada, e é exatamente o que ele deseja, porque é nessa fronteira que está o peixe que ele quer, e é precisamente o que consegue.
Potencial
Santiago era um homem que não precisava provar nada para ninguém, principalmente a si próprio. Isso é deixado muito claro pela reputação que ele tem com o menino Manolin, com os outros pescadores e também na história da queda-de-braço. O que Santiago está atrás é, na verdade, da sua grande obra prima. O fato dele conseguir pegar vários peixes menores durante a luta, para poder sobreviver, deixa claro que, se ele quisesse, poderia viver de peixes pequenos. Porém, parece que não era isso o que ele queria.
Isso explica bem porque não apareceu nenhum peixe por tanto tempo. É porque não era qualquer um que servia. Santiago ficou no mar até completar o seu potencial, e quando a oportunidade apareceu, em nenhum momento ele hesitou. Sabia precisamente o que fazer, o que deveria esperar e o que iria sofrer. Porém, não fazia ideia da escala que as coisas podiam atingir. No final das contas, o peixe que ele pega no fundo do mar era gigantesco, a ponto de não ter nem mesmo como colocar dentro do barco.
Alguns outros pontos que merecem ser comentados é sobre o cuidado para a linha não se romper e as várias vezes em que ele torce para o peixe não ir para o fundo. Isso diz respeito, no caso da linha, ao cuidado para se manter naquela tensão ideal entre o conhecido e o desconhecido, de modo a não se perder do seu objetivo e também não ser arrastado por ele sem controle. Enquanto o peixe arrastava Santiago e o seu barquinho, ele sempre estava consciente de onde estava indo e com a linha sempre precisamente tensionada. Nos momentos em que era preciso, soltava um pouco e, em outros, puxava. Mas sempre tinha em mente que o seu objetivo era derrotar o peixe, mas não podia deixar a linha se romper e nem ser naufragado pelo adversário.
Sobre o peixe ir para o fundo, também é meio óbvio. Existe um limite em que uma coisa pode ser puxada do fundo do caos. Quanto mais no fundo do oceano, mais difícil de trazer algo para a superfície. Se o peixe descesse muito, Santiago afirma isso pelo menos umas duas vezes, ele não seria capaz de trazê-lo para a superfície. Em outras palavras, a sua obra-prima estaria perdida para sempre no fundo do caos. Santiago sempre sabe, precisamente, o limite em que ele pode se posicionar entre o caos e a ordem, e sempre fica ali naquela margem calculada.
Roubar e não poder carregar
O peixe é, então, a concretização do potencial de Santiago. Um homem que dominou todo o conhecimento como pescador, que tinha uma relação muito bem estabelecida com o mar, com os peixes e as aves e também consigo próprio. A ironia da história toda aparece, justamente, no final. De todo o conhecimento que Santiago tinha a respeito de todas essas coisas, a única coisa que faltava era entender o próprio tamanho. No final, o peixe que ele pegou era tão grande que ele não estava preparado para carregar, e então o caos leva embora o seu prêmio.
Porém, é Santiago quem não reconhece o próprio potencial de Santiago. O menino, ao contrário, sabia o quão grande ele era. Os outros pescadores, quando vêm a carcaça do peixe, não parecem ficar surpresos, porque todo mundo sabia o que Santiago seria capaz. O seu único erro, na história toda, foi sobre si próprio. Sobre não preparar um barco maior, não levar o menino para ajudá-lo. Com um barco maior e um ajudante, teria colocado o peixe para dentro, longe da ameaça dos tubarões.
Acho que aqui reside a grande lição de o Velho e o Mar. Muitos homens maduros sabem do que são capazes, mas não acreditam que seja possível conseguir o que querem. Quando conseguem, não sabem como lidar com o prêmio e acabam devorados pelo caos. Os tubarões são exatamente isso. Ali estava a parte que Santiago ainda desconhecia e que, portanto, não estava preparado para ela, que era o sucesso. Pra mim, pelo menos, essa é a grande lição a ser aprendida com esse livro, e não a de que é possível superar as situações difíceis.
O choro constante do menino, no final do livro, não me parece estar relacionado ao estado fisicamente lamentável que Santiago retorna à praia, todo ferido. O menino viu um homem completar todo o seu potencial para, logo em seguida, ser devorado pelo caos. Mas ele toma a atitude correta, faz tudo o que pode para que o amigo volte para o mar e, quem sabe, consiga de novo. Se Santiago aprendeu a lição, não temos como saber, mas, ao menos, passou a aceitar o menino como ajudante.
A coroação da ironia é que, ao final, os turistas confundem a carcaça do peixe com a de um tubarão. Ou seja, para quem não viu a história. tudo é caos do mesmo jeito.